Descrição de chapéu sustentabilidade

COP15 inclui informação genética em pagamento de royalties da biodiversidade

Repartição dos benefícios agora se estende ao patrimônio genético digital disponível em bancos de dados

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Montreal (Canadá)

Na mosca, uma solução para o câncer: em 2015, pesquisadores brasileiros e britânicos descobriram que o veneno da vespa conhecida como paulistinha é capaz de distinguir e atacar células cancerosas. Já um tratamento para dor de dente foi achado no extrato de jambu, hortaliça usada na culinária paraense. O feito foi registrado por pesquisadores da Unicamp em 2017.

Cada vez que uma espécie da natureza rende uma descoberta científica, uma solução médica ou um novo produto, o crédito também vai para os detentores da biodiversidade, que podem receber royalties por resultados econômicos do uso da biodiversidade.

No caso da cana-de-açúcar, conhecida há décadas pelo potencial energético na produção do etanol, a sua produtividade deve ser alavancada a partir do sequenciamento genético desenvolvido pela USP.

Líderes durante conferência da COP15 da ONU
Após duas semanas de negociações, a COP15 da Biodiversidade da ONU adotou o novo marco global da biodiversidade na madrugada da segunda-feira (19) - Divulgação/UN Biodiversity

Para além das amostras físicas, os recursos da biodiversidade carregam tesouros no seu DNA. A partir de agora, a repartição dos benefícios pelo acesso à biodiversidade se estende à informação genética digital disponível em bancos de dados. A decisão foi adotada na madrugada desta segunda (19) pela COP15 da Biodiversidade da ONU.

Ao longo da última década, a disponibilização das informações genéticas das espécies em bancos de dados digitais acelerou o desenvolvimento de pesquisas, dispensando o acesso físico aos materiais genéticos.

A inovação esvaziou o Protocolo de Nagoia, de 2010, que estabelece diretrizes para relações comerciais bilaterais entre um país detentor e outro usuário da biodiversidade —de modo que o uso do recurso fica sujeito a uma autorização prévia, conforme cada lei nacional.

Além de atualizar Nagoia ao incluir a informação genética digital como parte do patrimônio sujeito à repartição de benefícios, a decisão da COP15 dá um passo na direção de facilitar a complexa implementação do acordo: os países concordaram com a criação de um fundo multilateral que fará a intermediação entre usuários e detentores da biodiversidade.

Assim, a empresa que criar uma inovação a partir da biodiversidade poderá pagar os royalties a um fundo multilateral, em vez de ter que rastrear a proveniência do DNA e procurar negociar com o país (ou os países) de origem. O fundo internacional, por sua vez, definirá os critérios para repassar os royalties aos países detentores da biodiversidade.

Como as regras só serão definidas no próximo ano, ainda há incerteza sobre como os grandes detentores da biodiversidade poderão se beneficiar. Há um bolo na mesa, mas não sabemos se pegaremos uma fatia, afirmou um negociador da COP15 em referência à falta de definições sobre o novo mecanismo.

O Brasil, que concentra cerca de 20% da biodiversidade mundial, segundo o Pnuma (Programa da ONU para o Meio Ambiente), foi um dos principais defensores da agenda da sequência genética digital na COP15 e venceu a resistência de países ricos, principalmente do Japão, que insistiu no argumento de que o caráter imaterial da informação genética a deixaria de fora do escopo da Convenção de Diversidade Biológica da ONU.

"Hoje os principais bancos de dados [de sequências genéticas] estão sob a governança da União Europeia, do Japão e do Estados Unidos, e eles não pedem consentimento ou autorização para usar aquela sequência, você pode baixar e usar como quiser", afirma o biólogo Henry Novion, especialista em acesso e repartição de benefícios de patrimônio genético.

"Onde se discute acesso a recursos genéticos no mundo, a discussão está travada por conta de DSI [informação de sequências digitais, na sigla em inglês]", ele avalia, citando como exemplo tratados de cooperação na FAO (Organização da ONU para Alimentação e Agricultura) e na OMS (Organização Mundial da Saúde), que discute facilitar a cooperação para a criação de vacinas.

"Destravar a discussão aqui na COP15 pode destravar em todos esses outros fóruns também. Eles devem adotar mecanismos similares, para que haja harmonia", completa Novion.

Ex-diretor de patrimônio genético do Ministério do Meio Ambiente, Novion foi um dos formuladores da legislação que regulamenta o tema no país e deixou o cargo na primeira semana do governo Bolsonaro. Em outubro deste ano, logo após o resultado das eleições presidenciais, ele foi chamado pelo Itamaraty para apoiar tecnicamente as posições do país sobre o tema na COP15 da biodiversidade.

A diplomacia do Brasil emplacou na COP15 um modelo espelhado na lei brasileira, que conseguiu desburocratizar o processo de repartição de benefícios ao acabar com a necessidade de autorização prévia para pesquisas baseadas em uso da biodiversidade. No mecanismo global, os usuários só precisam comunicar o uso da biodiversidade no momento em que há resultados, assim como funciona hoje no Brasil.

Em vez do consentimento prévio, a lei 13.123/2015 exige uma declaração em etapas-chave do desenvolvimento da pesquisa, como a publicação, o transporte de material genético ou o resultado econômico de um produto. Para este último caso, a lei prevê o pagamento de 1% de royalties, que vão para o Fundo Nacional de Repartição de Benefícios (FNRB).

O modelo da lei brasileira muda a ordem dos fatores: tira da frente das pesquisas o obstáculo da autorização, deixando a obrigação dos pesquisadores com o governo para os momentos em que há um resultado a ser comunicado.

"Pela lei brasileira, o conceito de acesso é muito amplo: toda pesquisa ou desenvolvimento tecnológico envolvendo a biodiversidade, mesmo que só teórica, deve ser cadastrada no sistema", diz Francine Leal, diretora da consultoria GSS, especializada em acesso a patrimônio genético.

"Por outro lado, só reparte benefício o último elo da cadeia, o produto final, somente quando o componente [da biodiversidade] agregar valor ao produto, ou seja, quando for um dos ativos principais ou tiver apelo mercadológico. No fim das contas, poucos produtos acabam repartindo benefícios", ela avalia.

De 2016 para cá, o FNRB recolheu cerca de R$ 5 milhões em royalties da biodiversidade e o equivalente a R$ 17 milhões investidos diretamente por empresas em iniciativas de conservação —a empresa ganha um desconto ao escolher se responsabilizar por um projeto.

A gestão do FNRB ficou paralisada durante o governo Bolsonaro, que extinguiu conselhos cuja participação no fundo era obrigatória.

Por outro lado, alguns projetos financiados diretamente pelas empresas usuárias da biodiversidade saíram do papel no final da atual gestão. Um deles libera royalties pagos pela Avon, por causa do desenvolvimento de cosméticos a partir de espécies da biodiversidade brasileira, destinando-os a projetos que fomentam a bioeconomia no Pantanal.

"Além do ordenamento da produção [da castanha] do cumbaru, tem o aspecto da restauração [após os incêndios de 2020]. Vamos trabalhar com as comunidades, inclusive na valorização dos conhecimentos tradicionais para a recuperação dessas áreas" afirma Cláudia de Pinho, coordenadora da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras, que foi contemplada pelo financiamento com projetos em duas comunidades do bioma.

Um dos pleitos das comunidades tradicionais que participam do conselho gestor do SisGen (Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético) é que a porcentagem dos royalties deveria ser mais alta nos casos de pesquisas desenvolvidas com base em conhecimento tradicional associado à biodiversidade, neeste caso, a autorização prévia é obrigatória por lei.

"Na época da criação do decreto, a gente defendia que 5% seria justo, não só pela repartição, mas pela conservação e o manejo dos nossos territórios", diz Cláudia, que também tem assento no Conselho Nacional dos Povos e das Comunidades Tradicionais.

A jornalista viajou a convite da ONG Avaaz.

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