Descrição de chapéu pantanal

Bisneto de caçador de onças-pintadas hoje protege os felinos no Pantanal

Pesquisador do Instituto Homem Pantaneiro atua na tentativa de mudar a cultura de medo em relação às onças e incentivar a sua valorização

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Corumbá (MS)

Mané Brabo caçava onças-pintadas no Pantanal com uma zagaia, uma espécie de lança, e com cachorros. O futuro reservou para o bisneto do caçador a proteção do atualmente ameaçado felino, uma das espécies-símbolo do Brasil.

Brabo era o apelido de Manoel Quintiliano. O nome pelo qual era conhecido, obviamente, tinha a a ver com o seu trabalho.

Aproximar-se o suficiente das onças-pintadas (Panthera onca) para usar uma zagaia (ou azagaia) não é algo simples, como é de se imaginar. Daí a presença dos cães, que rastreavam os felinos e guiavam os caçadores para encurralar o bicho. A zagaia tinha ainda duas pontas laterais, quase como um tridente, o que poderia ser útil perante as patadas felinas.

As onças eram só um dos animais caçados por Mané Brabo.

Dois homens posam para foto com animais mortos sobre o carro; um deles segura um pequeno bicho sobre o capô do carro
Manoel Quintiliano, conhecido como Mané Brabo (o homem que segura o pequeno animal morto sobre o capô do carro), era caçador no Pantanal - Arquivo Pessoal

Apesar do seu nome, a atuação dele não tinha a ver com caçadas em busca de aventura, troféus e contagens de animais abatidos. O Brabo caçava para sustentar a família, o que fazia a partir da venda das cobiçadas penas e peles dos animais silvestres brasileiros, afirma Diego Viana, coordenador do Programa Felinos Pantaneiros, do IHP (Instituto Homem Pantaneiro), sobre o seu bisavô paterno.

Manoel nasceu em 1894. Sua atuação como caçador, portanto, ocorreu na primeira metade do século passado.

A caça só foi proibida no Brasil no início de 1967, a partir da lei 5.197. Segundo a legislação, além da proibição da captura, perseguição, destruição e apanha dos animais, também ficou proibido o comércio de produtos e objetos que implicassem na caça dos mesmos.

"Uma das áreas que ele ia para caçar onça era a serra do Amolar. E hoje eu vou nessa região para cuidar delas", diz Viana. "Isso sempre esteve atrelado à minha família. Quando eu me coloco nesse conflito, já estive dos dois lados."

Viana conta que a atuação de seu bisavô, que morreu antes de ele nascer, como caçador de onças sempre foi motivo de orgulho na família. "Era um exemplo de bravura."

Fora as histórias familiares sobre o antepassado caçador, as onças sempre estiveram presentes no imaginário de Viana. Durante a infância, ele costumava ir com a sua família para uma fazenda na região de Miranda, município em Mato Grosso do Sul. E foram várias as vezes em que ouviu histórias de onças matando gado na região.

"Eu também sentia medo, achava que a onça vinha me atacar. Toda a cultura despertava vários sentimentos", diz o especialista.

Viana diz que todo pantaneiro sente medo, mas, ao mesmo tempo, respeita e admira as onças-pintadas.

Em meio aos sentimentos e histórias pantaneiras, surgiu em Viana o ímpeto de trabalhar com animais e, logicamente, com as onças.

"Todas as fotos que eu tenho dele [do bisavô] são fotos de caçada. Ficava na casa inteira. Sempre me incomodou um pouco ver um monte de foto de bicho morto", afirma Viana, sugerindo um possível gatilho para a sua dedicação atual à conservação.

Apesar da evidente diferença da relação de Manoel e Viana com a natureza ao redor, o especialista reafirma a importância de reconhecer e valorizar o passado, os conhecimentos dos povos pantaneiros —inclusive, a preservação da cultura da região é um dos propósitos do Instituto Homem Pantaneiro.

A própria zagaia é um símbolo disso. Segundo Viana, a arma fazia parte da tradição indígena e acabou usada pelos pantaneiros posteriormente.

O especialista também aponta que, apesar dos óbvios problemas quanto aos caçadores e ação deletéria, eles, eventualmente, tiveram participação no processo de descobertas sobre o animal.

"Quem trazia conhecimento sobre a onça-pintada eram caçadores. Nos primeiros trabalhos científicos, caçadores acompanhavam e apresentavam a região. Aqui no Pantanal, os fazendeiros abriram caminhos para a ciência na Serra do Amolar", diz Viana.

Mas, logicamente, o conhecimento compartilhado estava abarrotado de vieses. Os caçadores iam ao encontro de um animal selvagem sorrateiro e com uma enorme força. Já o contato dos proprietários de terras com esses felinos muitas vezes era de perda de rebanho e, consequentemente, prejuízo —evitar esse contato conflituoso é um dos braços de ação do IHP.

"A percepção deles era de que era um animal perigoso. A população pantaneira recebia informação dessas pessoas", diz Viana. "É um conhecimento totalmente válido, a gente aprendeu com esses relatos. Porém, assim como qualquer aspecto cultural, a gente evolui."

Em parte, a origem do medo e do respeito culturais do pantaneiro perante o imaginário das onças-pintadas pode ter ligações com esses relatos iniciais.

E parte do atual trabalho conservacionista de Viana é buscar, a partir de informações científicas, desfazer a imagem de terror em relação a esses felinos e mostrar o comportamento real e natural do bichano, que provavelmente não vai atacar ninguém sem motivo.

"Cada vez mais que a gente aprende sobre as onças-pintadas, mais vontade temos de valorizar tudo que já passou da história, mas criar uma nova história", afirma o pesquisador.

E uma parte dos novos tempos já começou. Da mesma forma que os familiares se orgulhavam do antepassado caçador de onças, hoje o orgulho é pelo conservacionista que olha pelo animal ameaçado de extinção.

Apesar do trabalho em curso do qual Viana participa, a cultura do temor pantaneiro em relação às onças ainda é mais forte —afinal, é histórico.

"Cuidado com a onça." É o que dizem os mais velhos na família, segundo Viana, quando o pesquisador vai fazer trabalhos de campo.

E lembram da suposta bravura presente nos antigos caçadores a ponto de serem capazes de perseguir onças com lanças? O pesquisador relata que os brabos com as lanças tinham limites. "Sempre tinha alguém com arma atrás", ressalta Viana.

O jornalista viajou ao Pantanal a convite da GM (General Motors)

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