Descrição de chapéu Agência Fapesp desmatamento

Cerrado requer ações rígidas de proteção e recuperação de áreas para frear desmate, alertam cientistas

Em carta publicada na revista Nature Sustainability, brasileiros destacam índices recordes de derrubada da vegetação no segundo maior bioma da América do Sul

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Luciana Constantino
Agência Fapesp

O acelerado ritmo de conversão da vegetação natural do cerrado em áreas agropecuárias está causando impactos nos serviços ecossistêmicos do bioma.

Para frear o problema, é necessário implantar ações de proteção mais rígidas, complementadas com um planejamento territorial focado na formação de corredores ecológicos e na recuperação de pastagens degradadas. Este é o alerta feito por pesquisadores brasileiros em carta publicada na revista científica Nature Sustainability.

Segundo maior bioma da América do Sul, com uma área de 2 milhões de quilômetros quadrados, o equivalente ao território do México, o cerrado é a savana mais biodiversa do mundo, com mais de 11,6 mil espécies de plantas nativas. Conhecido também como "berço de águas" no Brasil, abriga diversas bacias hidrográficas que abastecem as regiões Sul e Sudeste.

Vista aérea de babaçual, na zona rural de Lago do Junco, no Maranhão
Vista aérea de babaçual, na zona rural de Lago do Junco, no Maranhão - Lalo de Almeida - 10.nov.2021/Folhapress

Porém, vem registrando recordes de desmatamento —um aumento de 16,5% entre agosto de 2022 e julho de 2023, alcançando 6.300 km² destruídos no período.

Os dados são do sistema de alertas Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), divulgados no último dia 3 de agosto. Foi o pior resultado desde o início da medição, entre 2017 e 2018. A maior parte dos alertas está na área conhecida como Matopiba, que abrange Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Quase 75% do desmatamento do bioma está na região.

Em 2022, a derrubada da vegetação no cerrado já havia sido 25% maior do que no ano anterior, chegando a 10.689 km². É quase igual ao total desmatado no mesmo período na Amazônia (11.568 km²), que abrange um território duas vezes maior.

"É reflexo. Há menos ações para coibir o desmatamento no cerrado do que na Amazônia, por exemplo, ao passo que atividades derivadas dessa conversão dão lucro. Contudo, suas funções ambiental, econômica e social interessam, igualmente, ao planeta. O próprio acordo Mercosul-União Europeia tem entraves relacionados à sustentabilidade na cadeia de produção agropecuária, mas ainda negligencia o cerrado. É necessário e vantajoso priorizá-lo nas discussões diplomáticas", diz à Agência Fapesp o primeiro autor da carta, Michel Eustáquio Dantas Chaves, pós-doutorando na Divisão de Observação da Terra e Geoinformática (DIOTG-Inpe) apoiado pela Fapesp.

Segundo os pesquisadores, a perda da vegetação vem contribuindo para eventos climáticos extremos, aumentando a temperatura, reduzindo a capacidade de as plantas lançarem umidade no ar (evapotranspiração) e alterando o regime de chuvas, com consequente ameaça à viabilidade de sistemas de cultivo múltiplos e à produtividade.

"O ritmo recente de desmatamento está alto e já afeta condições edafoclimáticas [características do meio ambiente, como: clima, relevo, temperatura, umidade do ar, precipitação pluvial para a atividade agrícola e outras] vitais. Isso compromete até mesmo o futuro da produção nacional, podendo desencadear crises ambientais e socioeconômicas, bem como afetar políticas de segurança alimentar", explica Chaves.

Precaução

Na carta publicada na Nature Sustainability, com o título "Reverse the cerrado’s neglect" (Revertendo o descaso com o cerrado), os cientistas alertam que o bioma tem sido excluído de esforços que possam garantir a sustentabilidade.

Citam como exemplo a Moratória da Soja –um pacto feito entre organizações não governamentais, agroindústrias e governos com o compromisso de não comprar commodities de áreas desmatadas– só aplicada para a Amazônia, alguns projetos de lei e a nova regra da Comissão Europeia sobre a importação de produtos sem desmatamento. Essas normas deixam parte do cerrado desprotegido, como "zona de sacrifício" para desenvolvimento agrícola.

"O momento exige estratégias que unam provisão de serviços ecossistêmicos e produção agrícola. O cerrado é peça-chave nesse desafio, mas geralmente é lembrado apenas por seu potencial agrícola. Sua condição de ser a savana mais biodiversa do mundo, regular o clima, fornecer água e estocar carbono acaba negligenciada. Propusemos mecanismos para que o cerrado seja respeitado como o motor da capacidade agroambiental brasileira", completa Chaves.

Ele assina o artigo juntamente com o pesquisador Guilherme Mataveli, do Inpe, que também recebe apoio da Fapesp e mais quatro cientistas: Ieda Sanches e Marcos Adami (DIOTG-Inpe), Rafaela Aragão (Griffith University) e Erasmus zu Ermgassen (Université Catholique de Louvain).

O grupo destaca que investimentos tecnológicos feitos no cerrado desde os anos 1970 elevaram a produtividade brasileira de grãos de 1.258 para 4.048 kg/hectare, indicando ser viável conciliar atividade agrícola e políticas de conservação. Vê como igualmente positivo o recente restabelecimento e expansão do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento (PPCD) para todos os biomas brasileiros.

O plano visa estabelecer atividades produtivas sustentáveis, monitoramento e controle ambiental, ordenamento fundiário e territorial e instrumentos normativo-econômicos para reduzir o desmatamento e as emissões de CO2, em linha com os compromissos nacionais assumidos no Acordo de Paris e na Conferência das Partes das Nações Unidas (COP).

Os cientistas avaliam, porém, que a implementação do PPCD no cerrado depende de políticas específicas para o bioma, que envolvam esforços coordenados entre os governos municipais, estaduais e federal, além da necessidade de aumentar o número de agentes fiscalizadores e incluir agricultores e comunidades tradicionais nas políticas públicas e no debate sobre compensação para quem preserva a vegetação nativa por meio de Pagamentos por Serviços Ambientais, previstos na Lei 14.119/2021.

"O PPCD visa reduzir desmatamento ilegal. Porém, o cerrado tem mais de 330 mil km² de vegetação que podem ser desmatados legalmente [excedentes de reserva legal]. Precisamos integrar a proteção do capital natural a políticas estruturais de desenvolvimento educacional e tecnológico", destacam.

Para Chaves, fortalecer sistemas de monitoramento é essencial para a sustentabilidade. Desde 2017, o Inpe mantém o Projeto de Desenvolvimento de Sistemas de Prevenção de Incêndios Florestais e Monitoramento da Cobertura Vegetal no Cerrado Brasileiro.

Recentemente, o pesquisador e Ieda Sanches publicaram na revista Remote Sensing Applications: Society & Environment um estudo mostrando como é possível identificar culturas agrícolas com mais precisão a partir de dados de campo, conhecimento sobre calendários agrícolas, machine learning, índices espectrais e cubos de dados produzidos pelo projeto Brazil Data Cube, desenvolvido pelo Inpe.

"Reduzir incertezas ajuda a conferir segurança jurídica, recuperar soberania epistêmica agroambiental e apoiar políticas públicas. Logo, investir em iniciativas tecnológicas que possibilitem isso não é gasto. É investimento", conclui.

A carta "Reverse the cerrado’s neglect" pode ser lida em www.nature.com/articles/s41893-023-01182-w.

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