Descrição de chapéu Dias Melhores indígenas

Com roça e criação de peixes, terras indígenas de Roraima buscam aliar tradição e sustento

Comunidades lideram iniciativas para tornarem-se autossuficientes

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Amanda Magnani
Novo Paraíso (RR)

Nas roças recém-capinadas da comunidade indígena Novo Paraíso, em Roraima, o marrom da terra descoberta, onde manivas começam a brotar, contrasta com o verde da mata ao redor.

"Todos nós da comunidade somos agricultores", diz Maria Loreta Inácio Pascoal, do povo wapichana, a tuxaua (cacica) do Novo Paraíso. Enquanto caminha em meio às plantações, ela indica: "É daqui que tiramos o nosso sustento".

O Novo Paraíso foi a última das sete comunidades a ser criada dentro da TI (Terra Indígena) Manoá-Pium, em Roraima. Homologada em 1982, a TI tem área de quase 43,5 mil hectares e faz parte dos nove territórios indígenas da Serra da Lua, região caracterizada pela demarcação em "ilhas" —em áreas pequenas, cercadas por lavouras de monocultura.

Mulher de pé em uma plantação
Tuxaua (cacica) Maria Loreta Inácio Pascoal em uma das roças do Novo Paraíso, comunidade indígena em Roraima - Amanda Magnani/Folhapress

Dentro de nove meses, as raízes das manivas que hoje mal alcançam os calcanhares da tuxaua estarão prontas para a colheita. A mandioca passará por um processo tradicional até se transformar na farinha e então será comercializada nas comunidades próximas e em feiras em Boa Vista, capital do estado, onde um saco de um litro de farinha custa em média R$ 8 (na região, o produto é contado em litros).

A mandiocultura é hoje a principal fonte de renda dos moradores do Novo Paraíso. É também o carro-chefe do PGTA (Plano de Gestão Territorial e Ambiental), conjunto de ações traçadas pela comunidade para garantir a preservação ambiental e a autossuficiência.

"Para nós, essa produção é como uma mãe que irá sustentar os demais projetos da comunidade", explica a tuxaua, que assumiu o cargo após ser eleita no fim de 2022. "Nós hoje temos projetos de gado, piscicultura e horta medicinal que estão parados, e é essa renda que vai nos permitir dar continuidade a todos eles."

Para os povos indígenas, os PGTAs funcionam como planos de vida feitos para durar por décadas.

"Os projetos identificam áreas sagradas, definem áreas de produção e determinam as que serão preservadas pelos próximos 30, 40, 50 anos", explica Genisvan da Silva, do povo macuxi, técnico em sistema de informação geográfica do CIR (Conselho Indígena de Roraima).

Mas os PGTAs não são o único caminho encontrado para o desenvolvimento sustentável pelos povos indígenas de Roraima —estado com a maior porcentagem de indígenas em sua população e com 46% de sua área demarcada em terras indígenas.

A cerca de 80 km do Novo Paraíso, a comunidade Tabalascada, no município de Cantá (RR), possui desde 2010 uma associação de produtores, a Apit (Associação dos Produtores Indígenas de Tabalascada). Nela, os cerca de 40 associados têm a liberdade de se organizar em grupos menores, para diferentes atividades.

Cinco deles, por exemplo, se dedicam à piscicultura, explica Andréia Machado, atual presidente da associação, que mantém projeto na área.

Desde 2019, ela e o marido, Deodato Leocadio, ambos do povo wapichana, cuidam de centenas de tambaquis, peixes tradicionais da região. Deodato é responsável por alimentar os animais, conferir a qualidade do pH da água e fazer a limpeza do tanque, que fica nos fundos da casa onde vivem.

Ele, que já foi tuxaua de Tabalascada, recorda que a família passou por dificuldades para se alimentar quando deixou de criar peixes. Hoje a atividade representa uma fonte de renda, ainda que sem a comercialização em grande escala. Mas, principalmente, ela garante alimento para a família e para a comunidade.

"Muitas vezes, deixamos de cobrar pelo peixe, porque conhecemos as pessoas e sabemos as condições de cada uma", diz Deodato.

Atitudes como essa não são exclusivas do piscicultor. A economia indígena como um todo é marcada por conceitos de justiça e partilha, e, se replicados e ampliados, esses elementos podem dar novas possibilidades de desenvolvimento para a Amazônia, destacam especialistas.

Estudo recente desenvolvido pela ONG WRI Brasil, que contou com mais de 75 pesquisadores de instituições de todo o país, aponta que, em um cenário de expansão da bioeconomia, orientado pelos critérios do Acordo de Paris, o Brasil poderia, até 2050, aumentar seu PIB em R$ 40 bilhões. Além disso, seriam criados 312 mil novos empregos e o estoque de carbono da Amazônia —que refreia as mudanças climáticas— cresceria 19%.

O estudo constatou também que os modelos de bioeconomia com os melhores resultados sociais, ambientais e econômicos foram aqueles que replicaram os arranjos produtivos já existentes dentro das comunidades.

"Os povos que habitam a Amazônia sempre tiveram uma produção muito significativa", diz Caroline Rocha, gerente de clima na WRI Brasil.

"Mas a política de desenvolvimento que prevalece ainda hoje na região é baseada na exploração predatória de recursos ambientais e de bens comuns. Ela mantém as práticas tradicionais e as tentativas de empreendimento das populações locais abaixo do radar."

Para a especialista, uma economia sustentável na Amazônia só será possível se as populações tiverem alternativas de modo de sobrevivência. "É preciso que os povos indígenas sejam agentes do seu próprio desenvolvimento", defende.

Na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, homologada em 2005, também em Roraima, um projeto foi iniciado no princípio deste ano justamente com esse propósito. No Centro Regional Caracaranã, foi criada a Roça Estadual da Juventude. Iniciada por jovens lideranças, ela incentiva práticas sustentáveis na agricultura.

O foco na fase atual está no plantio de vegetais. A ideia é multiplicar as sementes tradicionais de variedades de milho, feijão, mandioca, entre outros, para que, nas etapas seguintes, as colheitas possam alimentar, de forma saudável, os jovens.

"Para nós, da juventude indígena, a sustentabilidade é um tema muito caro", explica Raquel Wapichana, coordenadora estadual da juventude de Roraima. "E esta roça é como estamos começando a colocar em prática o nosso discurso", diz.

A reportagem foi produzida com apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund (Amazon RJF) em parceria com o Pulitzer Center.

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