Mudança do clima na amazônia aumentou estação de seca, diz Carlos Nobre

Climatologista alerta que floresta pode desparecer se aquecimento global não for contido e desmatamento, zerado

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Valentina Gindri
DW

A seca deste ano na amazônia criou um cenário de terra arrasada. Com os rios em níveis baixos históricos, comunidades inteiras ficaram isoladas e com difícil acesso a alimentos e água potável. O tempo seco contribuiu ainda para a proliferação das queimadas, que destroem florestas e plantações e poluem o ar.

O aumento de períodos severos de estiagem na amazônia acende um alerta sobre o presente e o futuro da região. A comunidade científica adverte que as mudanças climáticas e o desmatamento podem levar à morte da floresta. Esse processo de degradação geraria enormes emissões de carbono, desregularia o sistema de chuvas no continente e causaria a extinção de centenas de espécies endêmicas do bioma.

Vista de drone de duas pessoas andando no leito seco do rio
Moradores de Porto Praia, em Tefé (AM), sofrem com seca no rio Solimões, próximo a comunidade indigena - Lalo de Almeida - 13.out.2023/Folhapress

Em entrevista a DW, Carlos Nobre, climatologista do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e referência mundial em estudos sobre mudanças climáticas, falou sobre a atual seca na região, o possível colapso irreversível da floresta e como reverter esse processo.

Seus estudos indicam que a amazônia pode perder suas características de floresta tropical úmida e virar um bioma desértico, semelhante ao cerrado, passando pela chamada "savanização". Como ocorreria esse processo?

Ocorreria pelo fato de que o clima na amazônia está mudando. Em primeiro lugar, nós temos o aquecimento global, que induz a uma estação seca muito longa em uma parte muito grande da amazônia. Junto com isso, há também o desmatamento. A pastagem recicla muito menos água do que a floresta.

A estação seca já está quatro a cinco semanas mais longa em todo o sul da amazônia, que vai do Atlântico até a Bolívia, quatro semanas na floresta, e cinco semanas em áreas muito desmatadas.

O início da estação chuvosa está sendo atrasado. Antes, no sudeste da amazônia, começava no fim de setembro, agora está começando no fim de outubro. Toda a estação seca durava de três a quatro meses, agora já são quatro a cinco meses. Quando atingir cinco a seis meses, passa a ser o envelope climático da savana tropical.

Se continuar nesse ritmo, a floresta vai se degradando, vai sendo substituída por uma vegetação degradada de céu aberto, com muito poucas árvores, muito pouco armazenado de carbono. Não será mais a floresta do céu fechado.

Retrato de Carlos Nobre
O climatologista Carlos Nobre - Arquivo pessoal

A atual seca já é histórica. Ela pode ser vista como um sintoma desse processo de desertificação?

O aquecimento global está induzindo secas mais frequentes. Nós tivemos cinco secas na amazônia em menos de 20 anos: 2005, 2010, 2015 e 2016, 2022 e agora, 2023. A seca deste ano está sendo muito forte, se continuar nesse nível, ela pode até bater o recorde da seca registrada em 2015 e 2016.

Essas secas têm a ver com o fenômeno El Niño no oceano Pacífico Equatorial. Mas secas fortes eram raras e agora estão acontecendo com enorme frequência no sul da amazônia. El Niños mais fortes estão acontecendo. Tudo isso acelera a degradação da floresta e esse processo de mudança drástica no seu bioma, que pode acontecer se alcançarmos o ponto de não retorno.

Em que estágio nós estamos agora? Se seguirmos nesse ritmo de desmatamento, quando alcançaremos esse limiar crítico?

O desmatamento já está na faixa de 17%. Nos últimos anos, a amazônia tem aumentado 1% de desmatamento a cada quatro anos. Seguindo nesse ritmo, atingiria 20% de desmatamento em menos de duas décadas.

De acordo com os últimos compromissos da COP27, o aumento da temperatura chegaria de 2,4°C a 2,6°C em 2050. Então, no máximo em 2050, já alcançaríamos o ponto de não retorno. Mas já estamos vendo o aumento da mortalidade e da duração da estação seca agora. Isso já está acontecendo, em todo o sul da amazônia.

Temos como reverter esse quadro de desertificação?

Alguns cientistas até dizem que o sudeste da amazônia já atingiu o não retorno, nessa região em que a mortalidade de árvores aumentou, e a floresta virou uma fonte de carbono. Mas vários cientistas, como eu, acham que não.

Se conseguirmos zerar o desmatamento, a degradação, o fogo e criar um grande projeto de restauração florestal em todo o sul da amazônia, temos como reverter. Uma vez que a floresta secundária se regenere, ela consegue absorver muito carbono, baixar a temperatura e reciclar de forma muito eficiente a água, impedindo a chegada do não retorno.

A degradação extrema na parte sul pode comprometer outras regiões da amazônia?

Compromete as outras partes, porque toda a floresta ali está reciclando muito menos água. Então os ventos transportam menos vapor d'água para o oeste da amazônia, por exemplo, que vai ficar mais vulnerável e também pode se degradar.

A amazônia entrando nesse processo extremo de degradação e desertificação, quais seriam as consequências para o resto do país e para o mundo?

A amazônia presta uma série de serviços ecossistêmicos. Ela armazena uma grande quantidade de carbono no solo, e os cálculos indicam que se passarmos do ponto de não retorno, numa faixa de 30 a 50 anos, a região vai liberar cerca de 250 bilhões de toneladas de gás carbônico na atmosfera.

Com isso, ficaria ainda muito mais difícil atingir as metas do Acordo de Paris, a temperatura aumentaria uns 0,3°C a 0,4°C a mais.

A floresta também regula a temperatura da amazônia. Se ela for substituída por esse ecossistema degradado ou por pastagens e pecuária, a temperatura sobe na faixa de 2°C a 3°C, e o vento que passa pela amazônia e desce para o cerrado chegará mais quente, aumentando ainda mais os riscos para esse bioma.

A floresta recicla uma grande quantidade de água. Se passar do ponto no retorno, ela passa a reciclar menos água e a exportar muito menos vapor d'água, que são os chamados rios voadores. Esses rios alimentam sistemas de chuva ao sul da amazônia, no cerrado, no centro, no sul do Brasil, centro-leste da Argentina, Uruguai, Paraguai, nos Andes, e até no Sudeste.

Além disso, a Amazônia tem a maior biodiversidade do planeta. A savanização afetará imensamente centenas de milhares de espécies que são endêmicas, só existem na Amazônia. Elas vão desaparecer. E, lógico, isso tem um grande risco ecossistêmico, risco de epidemias e pandemias, por exemplo.

Podemos afirmar que houve um aumento de eventos extremos na região amazônica e eles vão ficar mais comuns nos próximos anos?

Esses eventos extremos já estão mais comuns. Isso é devido ao fato de que a temperatura até o ano passado tinha aquecido 1,15°C em relação à média da temperatura de 1850 a 1900.

No mundo, os meses de junho, julho, agosto e setembro foram os quatro mais quentes da história, desde que existem registros históricos e também a partir de dados geológicos que revelam um passado ainda mais distante.

Nunca a temperatura esteve tão alta. Com isso, os extremos já acontecem em todo o planeta e também na amazônia, como os El Niños mais fortes.

Que soluções propõe para zerar o desmatamento ilegal e garantir que as pessoas tenham condições de viver na amazônia com um sustento digno e certa infraestrutura, sem degradar a floresta?

Primeiro, precisamos de uma ação imediata contra o desmatamento em todo o sul da amazônia, porque está muito próximo do ponto de não retorno. E então zerar o desmatamento em toda a Amazônia até 2030.

Este ano temos a boa notícia de uma enorme redução de desmatamento na amazônia brasileira, 50% até setembro em relação aos mesmos meses de 2022, e reduziu também na Colômbia, no Peru, no Equador.

Fiz parte da idealização do projeto Arcos da Restauração Florestal, que visa criar talvez um dos maiores projetos de restauração florestal de todo o mundo, e restaurar pelo menos 500 mil km² de floresta, um quarto dos 2 milhões de km² desmatados e degradados em toda a amazônia.

Por fim, temos que buscar soluções baseadas na natureza. Desenvolver uma nova economia para a amazônia. Uma economia baseada no conhecimento dos povos originários e comunidades locais, em sistemas agroflorestais, e nos produtos da biodiversidade. Os indígenas convivem há milhares de anos com a floresta em pé e desenvolveram uma ciência indígena muito importante, temos que aproveitar esse conhecimento.

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