'PAC hoje não é resiliente, nem ao clima atual, muito menos ao que vem aí', diz especialista

Natalie Unterstell avalia como ínfima a parcela de recursos do plano federal destinada à prevenção de desastres como o do RS

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São Paulo

Em meio ao desastre climático que devasta o Rio Grande do Sul, Natalie Unterstell, especialista em administração pública e presidente do Instituto Talanoa, dedicado a políticas voltadas às mudanças do clima, é categórica: "Qualquer investimento feito sem resiliência é um mau investimento".

À Folha, ela critica a falta de um olhar voltado à adaptação climática no país, apontando que, no eixo Cidades Resilientes e Sustentáveis do Novo PAC, apenas R$ 15,3 bilhões do total de R$ 1 trilhão são destinados à prevenção de desastres, pouco mais de 1,5%. "É ínfimo", afirma.

Homem em cima de jipe camuflado do Exército observa carro boiando em água marrom que cobre a rua
Veículo do Exército em via alagada de Eldorado do Sul (RS), na região metropolitana de Porto Alegre - Carlos Fabal - 9.mai.2024/AFP

Na última quarta-feira (8), em resposta às inundações no Sul, o governo federal anunciou a liberação de R$ 18,3 bilhões do PAC. No entanto, a maior parte (R$ 10,6 bilhões) irá para a descarbonização do transporte coletivo —medida importante para reduzir emissões de carbono, mas que não tem a ver com adaptação para o país resistir em um clima mais extremo.

Unterstell foi uma das coordenadoras do projeto "Brasil 2040: Cenários e Alternativas de Adaptação à Mudança do Clima", elaborado por instituições renomadas de pesquisa do país no governo Dilma Rousseff —mas interrompido em 2015, após Roberto Mangabeira Unger assumir a chefia da extinta Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência.

"É uma pena que lá atrás esse esforço foi descontinuado, senão nós estaríamos hoje, eu acho, num melhor patamar", avalia a especialista.

Retrato de Natalie por meio de uma janela de vidro transparente; os reflexos da paisagem externa aparecem em certas partes do vidro
Natalie Unterstell, especialista em políticas públicas climáticas e presidente do Instituto Talanoa - Zanone Fraissat/Folhapress

Os relatórios apontavam, entre outros aspectos, o aumento da incidência de chuvas extremas no sul do país e a redução do potencial de produção de energia hidrelétrica em outras regiões, que devem ficar mais secas. À época, o governo estava sob fortes críticas pela construção da usina de Belo Monte, no Pará.

Unterstell ressalta que a conclusão de um projeto abrangente que vem sendo elaborado pelo Ministério do Meio Ambiente é crucial para orientar as políticas futuras. "A tarefa mais importante que o Brasil tem neste ano é fazer o Plano Clima, que pode definir o destino das nossas ações daqui até 2035."

Considerando os alertas meteorológicos que foram emitidos antes das chuvas, como avalia a resposta do governo gaúcho?

Normalmente, você divide uma crise em cinco fases. A de prevenção é a primeira, que equivale à adaptação quando falamos de clima. É a meteorologia dando o alerta, por exemplo. As outras fases são o choque, seguido de resposta, recuperação e resiliência.

O choque é aquele momento em que, em qualquer crise, as pessoas vão ter os sinais, mas não sabem a hora de ativar a resposta. No Rio Grande do Sul, o governo do estado só ativou uma resposta no dia 30. Só que já tinha tido [temporais] nos dias 29, 28... Então, de fato, demorou.

Nesse momento do choque, se deslocou para lá o presidente da República, com uma comitiva extensa, mas ele não sabia o que fazer, porque a coisa estava começando a se desenrolar e numa dimensão cada vez maior. Eu não acho que o governador, mas principalmente o presidente, estivessem preparados para este momento.

E o momento do choque já aconteceu em junho do ano passado com aquele ciclone [que causou 16 mortes no estado]. Mas parece que não há um aprendizado.

Acho que o [governador] Eduardo Leite foi melhorando sua resposta quando foi recebendo apoio de outros governadores e a sociedade civil começou a ajudar. O governo federal também colocou à disposição agora um bom aparato.

Quais são as responsabilidades do governo federal diante de uma situação como essa?

O papel do governo, nesse momento, é disponibilizar pessoal, recursos, mas o principal é no pré-desastre, que já passou. Deveria ter feito adaptação, obras de resiliência.

O PAC não tem nenhum elemento de resiliência climática que olhe para o futuro. Tem só o mais do mesmo —drenagem e contenção de encostas. Dentro do eixo Cidades Resilientes e Sustentáveis, o valor previsto para prevenção de desastres é de R$ 15,3 bilhões do total de R$ 1 trilhão [do Novo PAC]. Ou seja, é ínfimo.

E as obras, no geral, não estão considerando os cenários climáticos futuros. Então, o PAC hoje não é resiliente, nem ao clima atual, muito menos ao que vem aí.

Em 2015, um estudo encomendado pelo próprio governo federal afirmava que o sul da América do Sul poderia ter chuvas mais intensas e por mais tempo, conforme o aquecimento global piorasse. De lá para cá, foram tomadas medidas efetivas de adaptação para esses cenários climáticos?

O programa "Brasil 2040" era composto por vários estudos, reunindo alguns dos grupos de pesquisa mais importantes do país. Esses estudos apontaram inequivocamente para a região Sul o aumento do estresse em relação às chuvas.

Na época, a gente viu, inclusive, o quanto isso impactava o sistema hidrelétrico. A região Sul tem importantes hidrelétricas, como Itaipu e outras menores, então [o estudo mostrava] como os reservatórios precisariam ser geridos, até mesmo para ajudar na regulação de enchentes.

Então, tivemos a oportunidade, entre 2013 e 2015, de estruturar uma estratégia nacional de resiliência e adaptação. Infelizmente, isso foi interrompido abruptamente.

Como aconteceu essa interrupção? Foi dada alguma explicação para isso?

Rodamos cenários climáticos regionalizados para o Brasil e depois foram estimados os impactos potenciais sobre recursos hídricos, geração elétrica, culturas agrícolas, drenagem urbana etc. E começamos a dialogar em alto nível no governo sobre o que precisava ser feito.

Continuar a construir hidrelétrica a fio d'água em zonas onde as projeções indicavam forte queda nas vazões? Investir em logística para exportação de culturas com alto risco de perder aptidão agrícola? Ou apostar em mais energia solar e eólica nas regiões de maior insolação?

Era um baita esforço, com várias mentes envolvidas e apoio forte [dos ministérios] da Fazenda, Ciência e Tecnologia, Transportes, Agricultura, Casa Civil. Mas a consolidação de propostas e prioridades foi interrompida, curiosamente quando os assuntos difíceis começaram a emergir.

Houve uma ruptura abrupta e mal explicada, resultando em uma oportunidade perdida. Houve seguimento nas pastas setoriais com modelagens e estudos. Porém, a maravilha de coordenar uma grande estratégia que mudasse a economia não se repetiu.

Falta agilidade na apresentação do plano de adaptação que está sendo desenvolvido pelo governo federal?

Ele demorou para começar, mas o calendário, por enquanto, está em dia. Mas há esse paradoxo de que a gente vai fazer planos enquanto os deuses riem da nossa cara, como diz o ditado. Enquanto o governo tenta organizar essa agenda, os efeitos da mudança do clima estão já batendo à nossa porta.

Espero que essa estratégia de organização seja definida até o final deste ano e que ela possa ser nacional, envolvendo os estados, a federação. A adaptação requer ação coordenada.

Adaptação climática é algo caro?

Adaptação é aumentar a sua margem de segurança para construir alguma coisa. Em geral, é algo coletivo, não individual. Não adianta você proteger a sua casa contra inundação e a cidade inteira colapsar.

Tem duas formas principais de fazer essa adaptação. Uma delas é a chamada adaptação cinza, aquela da infraestrutura física. Essa é muito cara. Estamos falando da construção de diques, quebra-mares, elevação de estradas para evitar alagamentos —coisas grandiosas e estruturais.

E não é só fazer, mas também manter. Em Porto Alegre, os relatos são de que a infraestrutura contra inundações vinha apresentando falhas, por exemplo. Isso realmente é custoso e poucas cidades do mundo já estão nesse nível, mas é fundamental.

Porém, há um segundo tipo de iniciativas, chamadas de medidas de não arrependimento, que não são tão custosas e muito mais fáceis de executar. Um exemplo é a proteção a áreas de preservação permanente, garantindo que as várzeas dos rios estejam desocupadas.

Em Nova York, após o desastre do furacão Sandy [em 2012], todas as áreas que tinham sido severamente afetadas foram transformadas em parques. Porque o parque é uma estrutura não permanente: se vier um outro furacão ou uma grande inundação, a área consegue absorver o impacto sem ninguém morrer e sem ter um dano econômico.

E como esses investimentos se comparam aos custos financeiros de lidar com os desastres?

Todos os números que eu já vi mostram que o custo da inação é sempre maior. Investindo em medidas, principalmente as mais precoces, você pode até pagar caro em algumas situações e pode ser que nem precise usar essas medidas depois, mas, se o evento extremo vier, não vão ser gastos bilhões reagindo ao desastre —isso sem contar as perdas não econômicas.

Além do PAC, que instrumentos poderiam ser usados para adaptar o Brasil a eventos climáticos extremos?

Olhando para outros países, há experiências relevantes que poderíamos adotar, como regras para todo investimento público em infraestrutura ter que considerar o risco climático e incorporá-lo ao projeto de antemão.

Pensando nos agentes econômicos, também é possível regulá-los com algum instrumento nesse sentido, para estimular os entes privados a construírem resiliência.

Tem um tipo de instrumento que é bem efetivo, que a Indonésia está explorando e que já funciona há bastante tempo nos EUA: o cidadão ganha um desconto de imposto, por exemplo, se ele toma algumas medidas adaptativas. No conjunto, com vários cidadãos fazendo, isso tem um efeito bacana.

Isso é uma coisa que a gente pode explorar muito como federação, dando incentivos para os municípios mais resilientes, como abatimento de dívida ou benesses fiscais.

E quanto aos estados e municípios, qual o papel deles nesse processo?

Estados e municípios têm o papel de implementar e ser guardiões das áreas naturais, das áreas de proteção ambiental e de preservação permanente que servem como zona de amortecimento de inundações e enchentes.

Infelizmente, nos últimos anos, houve uma série de tentativas, algumas bem-sucedidas, de mudar as regras ambientais nascendo nas assembleias legislativas estaduais.

O Rio Grande do Sul teve recentemente uma lei aprovada de forma acachapante na Assembleia e sancionada sem vetos pelo atual governador, que modifica uma das regras associadas às áreas de preservação permanente. Isso é inadmissível, porque eles estão, na verdade, tirando de si mesmos as chances de que eventos climáticos extremos não se tornem uma tragédia.


Raio-X

Natalie Unterstell, 40

Presidente do Instituto Talanoa, think tank voltado a políticas climáticas. É graduada em administração pela Fundação Getúlio Vargas e mestre em administração pública pela Universidade Harvard. Tem passagens pelo Fundo Verde do Clima, governo federal, governo do Amazonas, Fórum Brasileiro de Mudança do Clima e Instituto Socioambiental.

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