O calor vem matando aos milhares, e os grandes eventos ainda não se ajustaram a isso

Grandes aglomerações, como shows e peregrinações religiosas, não adotam medidas suficientes para prevenir mortes

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Somini Sengupta Damien Cave
The New York Times

Em grandes eventos no mundo inteiro, as cenas de estresse térmico extremo estão começando a parecer familiares. Homens mais velhos, com a camisa aberta, deitados de olhos fechados. Barracas de atendimento lotadas de pessoas inconscientes. E filas de fiéis —na religião, na música, nas urnas ou no esporte— suando sob uma nesga de sombra.

As consequências têm sido terríveis. Este ano, durante o hajj, a peregrinação islâmica na Arábia Saudita, pelo menos 1.300 pessoas morreram quando as temperaturas ultrapassaram os 37,7ºC. E, de muitas maneiras, esse grande número de mortos foi apenas o mais recente sinal de que o controle de multidões e as ondas de calor decorrentes das mudanças climáticas estão fadados a acabar em desastre.

A imagem mostra uma grande multidão de pessoas, muitas usando bonés e chapéus, sendo resfriada com um jato de água. Um oficial, posicionado em uma estrutura elevada, está direcionando o jato de água sobre a multidão. A cena parece ser de um evento ao ar livre em um dia ensolarado.
Bombeiro joga água em devotos para refrescá-los durante peregrinação anual do Jagannath Rath Yatra, ou "procissão das carruagens", em Puri, Índia - Reuters - 7.jul.2024

Dezenas de mesários morreram enquanto trabalhavam na recente eleição na Índia. No verão setentrional passado, tropas de escoteiros que visitavam a Coreia do Sul para comemorar um jubileu adoeceram por causa do calor, assim como outras pessoas em festivais de música na Austrália, na Europa e na América do Norte.

O calor mata mais pessoas hoje do que qualquer outro evento climático extremo, mas há um atraso cultural perigoso. Muitos organizadores e participantes de grandes eventos, ainda atrasados em relação à curva climática, não compreendem que o verão representa uma ameaça perigosa para grandes aglomerações de pessoas.

"À medida que as estações quentes se tornam mais longas e as ondas de calor chegam mais cedo, vamos ter de nos adaptar", afirmou Benjamin Zaitchik, cientista climático da Universidade Johns Hopkins que estuda eventos climáticos prejudiciais à saúde.

Ele acrescenta que o comportamento individual, a infraestrutura, o gerenciamento de emergências e os calendários sociais precisam efetivamente levar em consideração essa nova realidade.

Entre as muitas maneiras de evitar doenças e mortes sem a necessidade de alta tecnologia, estão as áreas sombreadas, as estações de água, as calçadas pintadas de branco para refletir o calor e os serviços de saúde de emergência para tratar casos graves de insolação.

Alguns lugares quentes e inovadores, como Singapura, construíram espaços públicos que conectam o exterior com o interior. O ar-condicionado foi integrado a áreas onde as pessoas precisam passar algum tempo esperando, como pontos de ônibus.

A solução mais difícil de todas pode ser aquela que, de certa forma, também é a mais simples: educar as pessoas sobre os riscos do calor, inclusive aquelas que estão acostumadas a viver em locais quentes.

Muitas vezes, elas não sabem quais são os primeiros sintomas do estresse térmico ou como as altas temperaturas são especialmente perigosas para quem tem algum problema de saúde preexistente, como doença renal ou hipertensão. Até mesmo medicamentos, como os anticolinérgicos, que tratam alergias ou asma, podem acelerar os problemas ao restringir o suor.

"O calor é um assassino muito, muito complexo, sorrateiro e silencioso", comentou Tarik Benmarhnia, pesquisador ambiental e professor associado da Universidade da Califórnia, em San Diego.

O trágico exemplo do hajj

O evento mais complicado de todos pode ser uma peregrinação religiosa. Devotos de muitas crenças —cristãos nas Filipinas, hindus na Índia, muçulmanos na Arábia Saudita— morreram de insolação durante rituais religiosos nos últimos anos. Mas o hajj talvez represente o nível mais alto de perigo.

Toda a Península Arábica é quente e rapidamente vem esquentando ainda mais. As temperaturas noturnas também estão subindo e acabam roubando as horas em que o corpo normalmente se resfria. Como se estende ao longo de cinco ou seis dias, o hajj agrava a exposição ao calor na cidade sagrada de Meca.

O calendário do hajj também é definido pelo ciclo lunar, de modo que os horários programados para a viagem podem ser os mais quentes, como foi o caso deste ano. E, como tendem a ser desproporcionalmente idosos, os peregrinos são mais vulneráveis aos efeitos do calor intenso.

Com o número de mortes deste ano, ele sugeriu que os especialistas em calor se baseassem nos acontecimentos recentes para elaborar rapidamente estratégias de adaptação com as autoridades religiosas.

O Ministério da Saúde saudita promoveu campanhas educativas pedindo às pessoas que se mantenham hidratadas e usem sombrinha. Além de montar hospitais de campanha e estações de água, as autoridades disponibilizaram milhares de paramédicos.

No entanto, isso não foi o suficiente para o contingente de milhões de pessoas, incluindo muitas que burlaram as cotas nacionais destinadas a limitar o excesso de público. Além disso, as mortes foram motivo de críticas à Arábia Saudita por causa da forma como esta lidou com a peregrinação.

Conscientização sobre perigos

A eleição disputada na Índia este ano demonstrou que, mesmo em lugares onde as pessoas acham que estão acostumadas às temperaturas altas, é preciso aumentar a conscientização sobre os perigos do calor extremo.

Em Bihar, pelo menos 14 pessoas morreram até o fim de maio, sendo que pelo menos dez delas eram membros de equipes de mesários, de acordo com as autoridades estaduais de assistência a desastres. Em determinado momento de junho, quase cem pessoas morreram em um período de 72 horas em Odisha, em casos possivelmente relacionados às condições de calor.

As autoridades de saúde da Índia tiveram de se preparar: nas unidades de insolação dos hospitais de Déli, os pacientes foram imediatamente mergulhados em banheiras de imersão cheias de gelo para baixar a temperatura. Em uma ala equipada com máquina de gelo, geladeiras e ventiladores, pacientes em estado crítico foram imediatamente colocados sobre placas de gelo e receberam infusões de fluidos frios.

No entanto, em muitas áreas, as ondas de calor e as votações chegaram ao ápice ao mesmo tempo, inclusive no distrito de Aurangabad, em Bihar, onde vivem três milhões de pessoas e onde as temperaturas chegaram a 48ºC no fim de maio.

Ravi Bhushan Srivastava, diretor médico de um hospital público, estava a caminho de avaliar os relatórios diários post-mortem em um dia particularmente ruim, quando 60 pacientes foram admitidos por insolação.

"Pelo menos 35 a 40 deles estavam em condições ruins, inconscientes ou com alterações de consciência, com o corpo muito quente e dificuldade para respirar. Nunca vi tantos pacientes com sintomas de insolação tão graves em toda a minha carreira", conta.

A vulnerabilidade pode ser maior em comícios e eventos eleitorais, em razão das grandes multidões que atraem. Mas também há muitas soluções viáveis.

De acordo com Aditya Valiathan Pillai, especialista em adaptação da Sustainable Futures Collaborative, organização de pesquisa em Déli, os participantes devem poder visualizar a temperatura local em tempo real, com níveis de risco codificados por cores. Podem ser instalados postos de distribuição de água potável, áreas de sombra e centros de resfriamento.

Não menos importante, os órgãos públicos devem se esforçar ao máximo para alertar sobre o calor. "Como agora temos previsões de ondas de calor bastante precisas com cinco dias de antecedência, esse tipo de aviso antecipado é possível", disse Pillai.

David Bowman, cientista climático da Tasmânia, afirmou que as pessoas já estão começando a se adaptar de pequenas maneiras. A sombrinha está se tornando um acessório da moda para proteger do sol, o uso de shorts no trabalho está sendo mais aceito e as obras nas estradas vêm, cada vez mais, sendo feitas à noite.

As mudanças climáticas poderão forçar os grandes eventos a mudar ainda mais. "Todos esses desastres são como uma etiqueta de preço cultural das alterações climáticas. É claro que podemos ser teimosos e ir em frente, independentemente das modificações na temperatura, mas, no fim, o clima vai acabar vencendo", observou Bowman.

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