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É correto abraçar um bicho-preguiça?

Impulsionados pelas redes sociais, locais de interação com animais têm crescido, para preocupação de ambientalistas

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Melena Ryzik
The New York Times

Talvez os gatos sejam os reis da internet, mas os bichos-preguiça não ficam atrás. Com um rosto que parece sorrir e uma necessidade fisiológica de se agarrar, esse mamífero de movimentos lentos, nativo da América Central e da América do Sul, tem sido frequentemente transformado em memes e em personagens de animação adoráveis. Mas recentemente os bichos-preguiça têm proliferado na vida real, longe de seu habitat arbóreo.

Podem ser alimentados, abraçados e fotografados em locais de exibição, como parques de animais e pet shops, frequentemente sem uma origem conhecida e sem que as normas sanitárias e de segurança estejam sendo seguidas de maneira rigorosa.

Junto dos fenecos —ou raposas-do-deserto—, que têm orelhas grandes, e dos juparás, com carinha de bebê, os bichos-preguiça são as atrações principais na crescente variedade de locais onde as interações com animais —quanto mais exóticos e maior o contato, melhor— sustentam o modelo de negócio.

Funcionário acorda uma preguiça-de-dois-dedos com uma vagem em seu recinto no SeaQuest em Trumbull, em Connecticut (EUA); animal é conhecido por movimentos lentos, mas possui garras grandes e afiadas - The New York Times

O número desses expositores com licença do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, em inglês) quase dobrou de 2019 a 2021, com mais de mil bichos-preguiça inspecionados anualmente nos últimos dois anos.

Segundo dados federais, o risco de morte de animais e de surtos de doenças têm aumentado —bem como as lesões humanas e as preocupações de especialistas e de agências estatais.

"O desejo de proximidade —de tocar, sentir contato direto com os animais— é muito antigo. Talvez isso esteja intrinsecamente ligado a nós. Mas o acesso e a procura aumentaram", comentou Nigel Rothfels, historiador que estuda zoológicos.

Seja em uma duvidosa barraca à beira da estrada (como em "A Máfia dos Tigres"), seja em um "tour pelos bastidores" de uma instituição reconhecida, os encontros geralmente acabam, propositalmente, nas redes sociais. Essa visibilidade normaliza o ato de abraçar as criaturas, mas muitos zoólogos argumentam que não deveria ser assim.

Pesquisas mostram que a exibição de interações pode levar as pessoas ao erro de pensar que essas espécies podem ser animais de estimação, ou questionar se estão mesmo em perigo de extinção.

"Resumindo: ver os animais em contato com pessoas pode provocar crenças negativas sobre a vida selvagem e a conservação", explicou Sally Sherwen, diretora de conservação de vida selvagem e ciência no Zoos Victoria, rede voltada para a conservação na Austrália.

A SeaQuest, cadeia norte-americana de aquários interativos, tem atraído a atenção de reguladores e defensores dos animais. Tem sete filiais, desde Folsom, na Califórnia, até Woodbridge, em Nova Jersey, a maioria com bichos-preguiça. E, por um custo adicional, os visitantes podem tocar em esquilos-voadores, mergulhar com arraias ou brincar com lontras e cangurus pequenos.

Outra questão é se os animais desejam esse tipo de interação.

Em entrevista, Vince Covino, que fundou a SeaQuest em Boise, em Idaho, em 2015, disse que os animais exibidos pela empresa gostam do contato humano e que o modelo tradicional de "olhar, mas não tocar" é antiquado.

"Há um estigma antigo: não toque nos animais; não os alimente. 'Silêncio, estão dormindo! Não querem interagir com humanos.' Mas não acreditei nisso."

Mas alguns zoólogos e muitos defensores de animais selvagens argumentam que esses seres não estão preparados para encontros próximos, por mais que pareçam adoráveis na hashtag #slothsoftiktok. Uma adolescente do Michigan aprendeu isso da pior maneira, quando foi mordida por um bicho-preguiça, em 2023, em uma loja de animais exóticos que oferecia interações semanais.

"Ela ficou com duas feridas profundas e o sangue escorria pelo braço", declarou sua mãe à imprensa local.

Certos animais podem desfrutar a diversão das atividades humanas, sobretudo em ambientes controlados, como os primatas brincalhões em um zoológico.

Jenny Gray, diretora-geral do Zoos Victoria e ex-presidente da Associação Mundial de Zoológicos e Aquários, afirma que, mesmo nesses casos, depende da criatura. Segundo ela e outros especialistas, forçar um animal a tirar fotos com humanos em um parque é exploração.

Quando os zoológicos públicos se tornaram populares, há mais de um século, todo tipo de interação entre humanos e não humanos era permitida. Mais tarde, por motivos de segurança, os animais foram isolados, antes de voltar a ser permitido o contato nas últimas décadas novamente, explicou Rothfels, autor de "Savages and Beasts: The Birth of the Modern Zoo" (selvagens e feras: o nascimento do zoológico moderno).

Alguns zoológicos estão agora reorientando a maneira como esses encontros são organizados, pensando neles do ponto de vista dos peludos e dos emplumados.

"Nossa prioridade é que o animal tenha o que chamamos de 'decisão e controle'", disse Dan Ashe, presidente da Associação de Zoológicos e Aquários, órgão de credenciamento dos Estados Unidos, que atualizou suas diretrizes e pede aos seus membros que atendam não só aos requisitos de saúde dos animais, mas também ao que Ashe chamou de "bem-estar social e psicológico", com o intuito de responder à pergunta: "Os animais estão felizes?".

Segundo ativistas de bem-estar animal, não é o caso dos indivíduos que estão nas filiais da SeaQuest. Essa empresa com fins lucrativos não é credenciada por nenhuma organização de zoológicos e, em alguns momentos, entrou em conflito com o USDA, que regulamenta só uma parte da fauna em exposição.

No verão setentrional passado, a SeaQuest de Trumbull, em Connecticut, com quatro anos de atividade, fechou as portas depois de várias autuações do USDA, incluindo uma ocasião em que um petauro-do-açúcar mordeu uma criança (o local foi criticado pela falta de supervisão). Outro, no Colorado, fechou este ano depois de numerosas citações estaduais e federais.

A empresa tem enfrentado protestos quase constantes de ex-funcionários e grupos como o Peta — organização internacional de direitos dos animais—, que entraram com queixas por crueldade, negligência e exploração contra a SeaQuest.

De acordo com registros estaduais obtidos pelo The New York Times, quase cem animais, incluindo dois bichos-preguiça, morreram na filial de Woodbridge, entre 2019, ano de sua abertura, e 2023.

No fim do mês passado, a divisão de peixes e de vida selvagem do Departamento de Proteção Ambiental de Nova Jersey enviou à empresa um aviso de infrações com 32 páginas, listando dezenas de animais doentes, feridos ou maltratados, incluindo répteis territoriais que lutavam tão agressivamente que sangravam no recinto.

Registrados por câmeras de segurança, uma lontra e um porco-espinho escaparam, mas a equipe não percebeu. Uma araracanga estressada arrancou as penas. As autoridades disseram à SeaQuest que a empresa deveria mudar suas práticas imediatamente e pagar uma multa simbólica até 10 de julho, ou enfrentaria penalidades financeiras significativas e a revogação de sua licença e de seus animais.

Quando solicitado a comentar as infrações, um porta-voz da SeaQuest sugeriu ao Times que procurasse a seção de perguntas frequentes do site da empresa.

Em resposta a uma investigação anterior da ABC News, a SeaQuest publicou: "Entre 2021 e 2022, a filial de Woodbridge adquiriu centenas de animais resgatados, muitos dos quais estavam em condições muito precárias de saúde". Os executivos não responderam às perguntas sobre incidentes específicos.

Dois bichos-preguiça também morreram na SeaQuest de Las Vegas. Assim como as outras, essa filial está localizada em um shopping fechado, onde há escassez de luz natural, umidade, vegetação e solo que possa ser escavado —elementos ambientais com os quais muitos animais prosperam.

De acordo com Covino, os indivíduos estão mais satisfeitos lá do que na natureza, porque a temperatura é controlada, são alimentados em horários regulares e não enfrentam perigos ambientais.

Ele mencionou que a acidificação dos oceanos ameaça milhões de seres vivos e acrescentou: "É uma realidade em todo o planeta, mas não na SeaQuest. Quando as pessoas entendem isso, percebem que os animais estão em melhor situação nos shoppings".

Covino, CEO da SeaQuest, não tem formação em zootecnia, biologia ou zoologia; era um corretor da bolsa de valores que abandonou a área depois de ter sua licença temporariamente suspensa por irregularidades fiscais. Primeiro, ele teve um aquário em Boise com seu irmão Ammon Covino, que foi condenado em 2013 por tráfico de animais ao tentar transportar organismos marinhos da Flórida para o Idaho.

Ammon foi condenado a um ano de prisão federal e proibido de participar da indústria da vida marinha, mas foi preso novamente duas vezes em 2016 por violar a liberdade condicional ao ajudar sua família a abrir outras instalações (a esposa de Ammon, Crystal Covino, é proprietária de um aquário em Austin, no Texas, que também foi objeto de escrutínio pelo USDA e por autoridades do estado).

Quando lhe perguntaram em uma entrevista por vídeo no ano passado se a SeaQuest tem um responsável pela ética animal, Vince Covino respondeu: "Você pode me dizer o que é ética animal? Não estou familiarizado com o termo". Um executivo da SeaQuest que estava presente leu uma definição na internet.

A empresa não emprega ninguém com essa função, disse Covino, embora sua equipe de linha de frente esteja atenta aos problemas. "Com 200 pessoas que, juntas, somam mil anos de experiência em comportamento animal, você adquire um conhecimento empírico. Entre todas elas, provavelmente todos os zoológicos e aquários do país já foram visitados."

Quanto a outras questões que críticos consideram prejudiciais, como acordar bichos-preguiça e outros animais de hábitos noturnos para interagir com humanos, os executivos afirmaram que a equipe da SeaQuest os treinou com luzes vermelhas para mudar seu ciclo circadiano natural para que se mantenham acordados em horários convenientes para os humanos.

O comércio de bichos-preguiça não é regulamentado pelo governo federal. Criadores vendem os animais, embora, de acordo com os dados federais, muitos ainda sejam capturados em seu habitat. Em razão da ausência de diretrizes sobre a manutenção de bichos-preguiça em cativeiro em alguns estados, é impossível dizer quantos deles podem estar em exposição em todo o país, mas ativistas afirmam que nos últimos anos houve um aumento, possivelmente por causa de "A Máfia dos Tigres".

Depois que a série documental de sucesso da Netflix chamou a atenção para a sórdida indústria dos filhotes de tigre, uma lei federal sobre "grandes felinos" foi aprovada, proibindo a posse privada e interação com o público.

Michelle Sinnot, advogada e diretora de aplicação da lei sobre animais em cativeiro do Peta, explicou que, de acordo com os conservacionistas, os exibidores de animais optaram por espécies menores e menos regulamentadas, como as lontras, os bichos-preguiça e outros primatas, e acrescentou: "Cada vez mais, vemos instalações e atrações à beira da estrada que estão vindo diretamente da casa das pessoas".

Alguns bioéticos argumentam que, independentemente da origem, não há uma maneira de animais não domesticados comunicarem consentimento para serem tocados. Será que uma arraia quer mesmo ser acariciada por uma criança em idade pré-escolar?

Os zoológicos e outras instituições dependem do envolvimento humano para proteger seus exemplares e entender a séria necessidade da conservação. Gray, chefe do zoológico australiano, observou: "Não é necessário tocar em todos os animais para se apaixonar por eles".

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