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Oposição de cientistas a negacionismo é questão de ética, diz Renato Janine Ribeiro

Novo presidente da SBPC lista crise de financiamento da ciência como prioridade

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São Carlos (SP)

O negacionismo do governo federal a respeito da pandemia acabou levando muitos cientistas brasileiros a adotar posicionamentos políticos mais claros. Para o presidente eleito da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), o professor de filosofia política e ética Renato Janine Ribeiro, a reação é um resultado natural de valores que se tornaram centrais para a comunidade científica, como a preocupação com a ética, a inclusão social e a sustentabilidade.

“A comunidade científica americana ficar contra o Trump, ou a comunidade científica brasileira mostrar perplexidade com o negacionismo do governo federal ou pessoas ligadas a ele, é sobretudo um posicionamento ético, que pode ter desdobramentos políticos, mas não é partidário”, diz o professor da USP. Janine Ribeiro, 71, foi escolhido pelos membros da SBPC para um mandato de dois anos em eleição com participação recorde –quase 2.000 votantes, ou 60% dos sócios ativos.

Professor e ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro - Mathilde Missioneiro/Folhapress

A prioridade inicial da nova diretoria do órgão será “tentar salvar o que tem de ser salvo” diante da crise de financiamento da ciência nacional. Sem a volta do apoio à pesquisa, diagnostica ele, o Brasil viverá uma situação inédita de fuga de cérebros em massa.

A eleição que fez do sr. o novo presidente foi a que teve o maior comparecimento desde 2009. O fato de haver duas candidaturas explica isso ou também tem a ver com o senso de urgência que a pandemia trouxe para os cientistas?

Tem a ver com esse senso de urgência, de fato. Os filiados sentiram que era muito importante participar dessa eleição para mostrar que a luta em prol da ciência, da educação, dos valores que a SBPC representa, é quase uma questão de salvação nacional. Mas é claro que a competição significa que quem prefere um dos candidatos vai se empenhar mais do que numa eleição de candidato único.

Ao mesmo tempo, relativamente poucos membros da comunidade científica pertencem à SBPC. Como enfrentar isso?

Temos de fazer uma campanha de filiação, para que muitas pessoas que já foram filiadas retornem e para que novas entrem. O valor é relativamente barato. Ao mesmo tempo, muitas pessoas se sentem representadas pela SBPC, mas por alguma razão não se filiaram a ela. Sabemos que o impacto da sociedade é bem maior [do que o número dos filiados]. É comum você ter, numa reunião anual da SBPC, 10 mil, 20 mil pessoas frequentando.

Quais são as primeiras prioridades do sr. e da nova diretoria?

O primeiro ponto é tentar salvar o que tem de ser salvo. Eu dou o exemplo do supercomputador Tupã [do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais]. Eu sei que o Tupã está um pouco defasado, e a manutenção dele é cara, mas o rumor que correu de que ele ia ser desligado por falta de pagamento de luz é de se comparar a uma situação na qual você tem um Mercedes Benz último tipo e não coloca óleo –e aí o motor vai fundir. O valor para o Brasil, seja desse emblema que é o Tupã, seja das universidades federais e dos institutos de pesquisa, é algo enorme para a gente perder.

O mesmo vale para as bolsas de pós-graduação. Nós estamos vivendo um fenômeno praticamente inédito no Brasil, que é a fuga de cérebros. Digo inédito porque o Brasil sempre teve uma fuga de cérebros relativamente baixa, bem menor que a da Argentina ou da Índia.

E agora você ouve falar de jovens que o país formou durante a graduação ou mesmo até o doutorado, gastando dinheiro e criando laços que vão além do dinheiro, com família, amigos e colegas, e aí você entrega essa pessoa pronta para um laboratório americano ou europeu. Isso é um absurdo. É uma economia boba.

Isso tem de ser uma prioridade, mas temos de lutar em vários fronts. Além de tentar defender o que pode ser perdido, nós também temos de pensar no futuro. Numa sociedade que depende da economia do conhecimento, a ciência e as áreas correlatas –a cultura, a educação em todos os níveis, o meio ambiente e a inclusão social– têm um papel decisivo. Todos esses fatores entram num círculo virtuoso inclusive para o crescimento econômico, daí o erro de algumas pessoas que colocam em oposição a necessidade de salvar vidas e a de salvar o PIB.

Veja o caso da floresta amazônica. Ela é, em grande parte, uma mata plantada pelas civilizações do passado. O que hoje nós chamamos de engenharia genética dos vegetais foi algo dominado, numa escala mais lenta de milhares de anos, pelos povos indígenas. Quando a gente vê uma foto como aquela do ex-ministro [do Meio Ambiente] Ricardo Salles, todo gabola na frente daquelas toras imensas, algumas talvez mais velhas que o próprio Brasil –é um absurdo você transformar isso em móvel sem nem fazer uma pesquisa.

Todos esses fatores que estão sendo desprezados hoje por uma visão de curto prazo do atual governo são muito importantes para o desenvolvimento econômico e para uma sociedade mais justa. E a ciência e a educação podem ser muito importantes, entre outros fatores, para revelar talentos hoje ignorados.

O fato de que a população mais pobre, nas favelas, tem pouquíssimo acesso a essas carreiras é um entrave tremendo para o desenvolvimento brasileiro. Você está perdendo possíveis cientistas, médicos, engenheiros e empresários. Eu costumo calcular que nós temos cerca de um terço ou um quarto da população que teve acesso a oportunidades de crescer na vida. É assustador –o Brasil está rendendo um terço do que ele pode render em todos os campos.

Ministros da Educação do governo Bolsonaro chegaram a defender uma visão mais elitista do ensino universitário, afirmando que ele não é para todos e que é preciso priorizar o ensino técnico. Até que ponto isso faz sentido?

Bom, o governo que eu conheço que mais se empenhou no ensino técnico foi o governo Dilma, por meio do Pronatec, um projeto, a meu ver, muito bem pensado, que infelizmente não funcionou como deveria porque faltaram verbas. Não tenho nada contra o ensino técnico, que muitas vezes é até melhor que o ensino médio.

Já os problemas do ensino superior talvez sejam dois. Primeiro, é necessário pensar na qualidade, sobretudo nos cursos privados. Em segundo lugar, é preciso discutir bem quais são as formações desejadas.

Grande parte dos estudantes hoje seguem para três áreas que são, pela ordem, direito, administração e pedagogia, formações oferecidas principalmente pelo setor particular. Mais tarde, esses estudantes muitas vezes têm dificuldade para se empregar. Portanto, é preciso discutir quais são os cursos que dão futuro para as pessoas.

Uma experiência muito interessante é a dos bacharelados interdisciplinares, na Universidade Federal da Bahia e na Universidade Federal do ABC. Na UFABC, há um bacharelado de ciência e tecnologia interdisciplinar que dura três anos. O curso leva o aluno a analisar a mesma questão por múltiplos ângulos, unindo matemática, física, química e biologia, e qualifica a pessoa para enfrentar uma série de desafios profissionais.

Com isso, você sai da lógica do diploma com reserva de mercado. Vamos supor que você queira ser designer de games, por exemplo. Com a formação desse tipo de bacharelado, você já tem meio caminho andado para essa e outras carreiras. E a UFABC fez algo muito bonito, que foi apresentar o curso aos alunos das escolas públicas das cidades do ABC e atraí-los, em vez de só atrair gente da capital.

Muitos cientistas brasileiros acabaram adotando postura política mais clara na pandemia, em parte como reação ao negacionismo do governo federal. Isso é algo que vale apenas para uma situação-limite, como a atual, ou é importante que os cientistas mantenham uma atuação política aberta sempre?

O desenvolvimento científico no século 20 esteve muito ligado à guerra, e o maior exemplo disso é a bomba atômica. Durante muito tempo, não havia problema em vincular a ciência a artefatos que matavam.

Já faz várias décadas, porém, que a comunidade científica desenvolveu uma preocupação ética clara e, mais recentemente, com a sustentabilidade ambiental. Quando você tem uma pandemia, isso salienta um processo que já existia e se fortalecia. É um posicionamento ético, antes de mais nada, que pode se desdobrar num posicionamento político. A comunidade científica americana ficar contra o Trump, ou a comunidade científica brasileira mostrar perplexidade com o negacionismo do governo federal ou pessoas ligadas a ele, é sobretudo um posicionamento ético. A defesa da paz, do meio ambiente, da vida e da inclusão social são pontos que foram adquirindo um consenso ético cada vez mais forte para os cientistas.

Antes da pandemia, o negacionismo contra a ciência não parecia ser uma força considerável no Brasil, mas ele parece ter emergido nos últimos dois anos. Como explicar isso?

Eu vejo dois fatores. O primeiro é que, embora seja difícil traduzir a linguagem das ciências exatas e biológicas para as pessoas, elas usam inúmeros produtos delas. Você pode usar um GPS e acreditar na Terra plana, ou se tratar com um remédio sem entender os princípios por trás dele. Isso é algo que a gente tem de sanar, mostrando melhor o vínculo entre o bem-estar das pessoas e a ciência.

O segundo ponto tem a ver com os avanços das últimas décadas em áreas como igualdade de gênero e igualdade racial, por exemplo. Quando vem a crise econômica, entre os que perdem o poder aquisitivo e o emprego, a busca de culpados é muito comum, e o mais fácil é culpar o diferente. Essas reações são soluços –calamitosos, doloridos, mas que acabam sendo superados. Vejo com otimismo essa superação.


Raio-X

Renato Janine Ribeiro, 71

Professor titular de ética e filosofia política da USP desde 1994, foi também professor visitante na Unifesp entre 2018 e 2020, onde criou o Instituto de Estudos Avançados e Convergentes (IEAC). Ex-ministro da Educação (governo Dilma, 2015), é autor de ‘A Pátria Educadora em Colapso’ (ed. Três Estrelas)

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