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Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Uma Eurodisney de Tupperwares

Descobri que estou infeliz porque uma época desgraçada vive em mim

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Durante um bom tempo achei que andava infeliz por viver numa época desgraçada. Outro dia, ouvindo um podcast sobre o cérebro, me dei conta de que é o contrário: estou infeliz porque uma época desgraçada vive em mim. Parece papo de hippie em Mauá, talvez seja -- cada vez mais concordo com os hippies de Mauá ou de qualquer outro lugar --, mas a época só existe dentro da nossa cabeça – "bicho".

Essa abstração a que chamamos de "o sistema" ou "a sociedade" ou "o mundo" é intangível do nosso nariz pra fora, mas é um fato concreto na gigantesca galáxia de neurônios caixola adentro. Medo de barata, torcer para o Corinthians, acreditar na salvação da alma ou no pecado original são emaranhados microscópicos feitos de células, moléculas e impulsos elétricos. Em exames de imagem é possível ver o nascimento de uma ideia ou a resolução de um problema matemático, uma explosão colorida e luminosa, tipo um mini Big Bang na tela de um computador. Eureca! = Fiat lux!

É bonito, muito bonito, mas trocando em miúdos (ou em miolos), isso significa que o aquecimento global tá aqui dentro da minha cabeça. O Bolsonaro tá aqui dentro da minha cabeça – a imagem num PET-Scan deve parecer aquele emaranhado de cabelo e lodo que se acumula no fundo do ralo. Os dentes de baixo do Bolsonaro, encavalados e cinzentos, existem para além de seu pântano bucal: ocupam milhares, talvez milhões de neurônios meus. Os neurônios que reconfiguram a imagem pútrida na minha memória, os que sentem asco toda vez que a lembrança é trazida à consciência, os que sentem ódio dos dentes e do resto. Aquela mandíbula é uma Estação Sé mal-assombrada dentro de mim.

Não adianta fazer análise, tomar remédio ou cachaça se entre as minhas orelhas uma turma de neurônios está diuturnamente encenando o fiasco da COP26, outra galera vive as eleições de 22, outra projeta o delinquente Ricardo Salles comentando com o Goleiro Bruno e o Chico Picadinho na Jovem (sic) Pan News (sic). Os famintos brigam por ossos e os aviões caem dentro da minha massa cinzenta, ao lado de livros, filmes e séries horríveis considerados excelentes por gente supostamente letrada. (As obras de arte deixarem de ser apreciadas como belas ou profundas para serem elogiadas como "urgentes" ou "necessárias" é outro sintoma desta época tacanha que trago encrustada nos miolos).

O que me impede de escutar o murundu neuronal berrando "desiste, não vale a pena" é saber que o próprio murundu do berreiro, assim como todos os outros murundus, pode ser desembaraçado e tecido de outra forma. "Neuroplasticidade" é uma palavra feia – parece uma Eurodisney de tupperware -- pra um troço lindo: a capacidade que o cérebro tem de se reconfigurar.

Emaranhados neuronais de 7 bilhões de pessoas – ou, pelo menos, dos chefes destas 7 bilhões de pessoas – afirmam valer a pena manter multidões na miséria e arriscar o futuro da humanidade para garantir a produção de energia suficiente para um bilhão carregar os celulares e seguir dando like em foto de gato, sofrendo com o Instagram alheio, respondendo zap de trabalho aos domingos e enriquecendo os Zuckerbergs da vida.

Bom, isso é só uma ideia de jerico, um meme que viralizou, como já foram a escravidão, o sacrifício de criancinhas e o Abecedário da Xuxa. Podem me chamar de hippie – tomarei como um elogio --, mas acredito que dá pra mudar isso aí. Não seria bom, só pra variar um pouquinho, carregar uma outra época sobre os ombros?

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