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Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Hoje, excepcionalmente

Diante de uma conurbação de prazeres, nada me resta além de inventar uma pequena desgraça que me absolva

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Hoje, excepcionalmente, não escrevo esta coluna. Semana retrasada eu também não escrevi, verdade. Pensando bem, minha falha não soa assim tão excepcional. Gostaria de dizer que a sequência de mancadas visa a normalizar o erro, num ato antissistema, antieficiência, Manifesto Pau-Brasil, "toca Raul!" e viva Domenico De Masi, mas estaria mentindo. A explicação é mais prosaica. Semana retrasada eu estava na praia, caiu um temporal, fiquei sem luz por 30 horas, o computador morreu, o celular morreu, tive medo de morrer também enfrentando a Rio-Santos e "Hoje, excepcionalmente"...

Agora é diferente. Embora eu esteja na praia, de novo, tem luz. É sexta-feira de Carnaval. Não chove, muito pelo contrário. O sol se põe no mar em algum ponto do horizonte entre Senegal e Angola, com requintes de calendário. Tem uma moqueca saindo do fogão a lenha. Seis crianças correm pelo gramado me chamando pra um esconde-esconde e um freezer horizontal cheio de Heinekens abre e fecha a tampa, murmurando "Antooooooonio... Antooooooonio".

Diante desta conurbação de prazeres, nada me resta além de inventar uma pequena desgraça que me absolva. Covid tá fora de moda. Dengue é sério demais. Problemas com filhos só costumo usar para faltar em casamentos, festas literárias ou outros encontros presenciais em que nem minha própria saúde é desculpa suficiente.

Há algumas décadas fiz uma crônica sobre isso, pra Capricho. Sobre o fato de só a dor nos absolver. Ninguém chega atrasado a uma reunião dizendo "gente, foi mal, tava chegando aqui e encontrei na rua o Gui, meu amigo da quinta série. A gente não se via desde 1989. Sentamos num café, bati meia hora de papo com ele, perdi a hora". Jamais. Atestado médico, chapa do pulmão ou qualquer outro mísero sofrimento solapam uma paixão fulminante, quando se trata de justificar a lição de casa não feita.

Ouvi dizer, não sei se é verdade: depois de descobrir e lançar o Bob Marley, fazendo do reggae um fenômeno mundial, o produtor Chris Blackwell estava procurando uma novidade. Algo com a mesma pegada pop e o mesmo molho de "alteridade". Descobriu certo carioca de Madureira chamado Jorge Ben. Ouvi dizer, não sei se é verdade: Chris Rockwell chamou Jorge Ben pra gravar nos estúdios da Island Records. Iria usar o canhão criado com Bob Marley pra fazer tocar "Mais que Nada" em todas as rádios, boates e festas do mundo. Acontece que a gravação caiu justo em fevereiro. Jorge Ben –ouvi dizer, não sei se é verdade– tinha se engraçado com uma moça em Salvador. Mandou avisar que estava gripado, febrão, não tinha como se tornar a nova maior estrela pop global, mal aí, ela é minha menina, eu sou o menino dela.

Acho essa história fenomenal. Eu, em meu narcisismo dente de leite, não consigo recusar um convite pra Festa Literária de Pirapora Mirim do Sul, como se disso dependesse a minha sobrevivência. Aí o Jorge Ben, esse Buda do subúrbio, entre a glória global e um rabo de saia, fica com o rabo de saia. Mindfulness no último.

Tivesse agido diferente e talvez, hoje, "Tábua de Esmeralda" e "Catch a Fire" fossem reconhecidos da mesma forma. E talvez, quem sabe, hoje, Jorge Ben estivesse todo plastificado e botocado, com uma carreira ridícula desde 1980, imitando as modas pop e fazendo dancinha no TikTok pra se manter "relevante", desde o equívoco de, Deus me livre, regravar "Não se Reprima" com os Menudos.

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