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Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

O que querem os pais?

Filhos podem se tornar o álibi para nossas covardias

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Na tarde da quinta (6) da semana passada, no programa Pânico da rádio Jovem Pan, o jornalista Augusto Nunes agrediu o também jornalista Glenn Greenwald com um soco.

Greenwald é um dos fundadores do site The Intercept, que publicou as conversas entre os procuradores da Lava Jato e Sergio Moro. Nunes carrega seu coração mais à direita do que à esquerda, com a consequência (nada óbvia, mas, enfim, é assim) de que, para ele, melhor a gente não saber nada dos diálogos entre juiz e promotores.

No 1º de setembro, no programa Os Pingos nos Is, também da Jovem Pan, Nunes atacou a família de Greenwald, que é casado com o deputado federal David Miranda (PSOL-RJ), com quem ele tem dois filhos adotivos: “O Glenn Greenwald passa o dia dando chiliques no Twitter, ou trabalhando de receptador de mensagens roubadas. Esse David fica em Brasília lidando com rachadinhas, que essa é a suspeita aí, que isso dá trabalho. Quem é que cuida das crianças que eles adotaram? Isso aí o juizado de menores devia investigar”.

Em retorno, Greenwald chamou Nunes de covarde. E logo foi o primeiro soco.

De fato, Nunes não foi corajoso. Ele tentou ganhar os sorrisos mais bestas da turma do fundão: como fica essa coisa de “família” de dois homens, hein? Não é mulher que deveria cuidar de crianças, hein?
Mas vamos aproveitar, pois resta uma questão que interessa a todos os pais, que sejam héteros, homossexuais ou trans. 

Há pais que organizam sua vida a partir das necessidades ou do suposto querer dos filhos. Eles renunciam a seus próprios desejos ou a seus princípios em nome dos filhos. Minha empresa quer me transferir para China, e eu sacrifico minha carreira e meu espírito de aventura porque penso que a transferência seria difícil para as crianças. Quero me tornar romancista, mas preciso ter um salário fixo e básico porque tenho filhos.

Na grande maioria dos casos como esses, as crianças se tornam o álibi para nossas covardias. Temos medo de nosso próprio desejo e racionalizamos: nossa renúncia será boa para os pequenos, que crescerão com mais “presença” dos pais.

E há pais diferentes, que não renunciam a seu desejo e a suas convicções “pelo bem” das crianças. Ou seja, há pais que não usam os filhos como desculpas por suas desistências. 

Como fica essa alternativa do lado das crianças? O que é melhor para elas? 

Será que é melhor para os filhos descobrir e confirmar que os pais querem sobretudo estar com eles, brincando de G.I. Joe ou de boneca? Essa dedicação corresponde à ideia moderníssima de que a infância seria o grande ideal de todos, inclusive dos adultos —a maior aspiração só poderia ser a de passar tempo com os pimpolhos, confortando-os no lugar ideal que eles ocupam em nossa cultura.

Claro, resta um problema: se, assim que der, na hora do descanso, os adultos escolhem se vestir de crianças de férias, por que diabo as crianças teriam a menor vontade de crescer?

Ou será que é melhor para os filhos descobrir e confirmar que os pais têm desejos, convicções e valores dos quais eles não desistem e que estão, para eles, acima dos deveres familiares e dos próprios filhos?
Não é fácil responder, e não conheço pesquisas experimentais que respondam. Em geral, cada um defende o tipo de amor que recebeu ou que teria gostado de receber.

Eu prefiro que as crianças não sejam a razão de os pais desistirem de seu desejo, e pouco importa o preço (ausência, medo de abandono etc.). E isso porque a sensação de termos algo para cumprir e o desejo de viver para cumpri-lo são muito difíceis de transmitir e mais importantes, para viver, do que o aconchego fornecido por uma presença física. 

De 1943 a 1945, na resistência antifascista, meu pai assumiu riscos absurdos, sem se colocar a questão de meu irmão, que acabava de nascer, que ele mal via e que poderia se tornar órfão muito cedo na vida —isso sem falar de mim, que, se ele morresse, nem teria nascido. 

Fico bastante satisfeito que ele não tenha desistido de suas ideias. Detalhe: minha mãe assumiu os mesmos riscos, se não piores. 

Ficaram longe? Não cuidaram? A meu ver, acharam que dar sua contribuição para acabar com o fascismo era mais importante do que brincar conosco —e isso, não só para eles, mas para a gente. Queriam que crescêssemos num mundo melhor e queriam nos ensinar os valores pelos quais eles viviam e podiam morrer.

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