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Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

Será que conseguiremos, de repente, inventar outros lampejos de vida?

Na Itália, nos anos 1960, nadávamos na superfície de um abismo sem fundo

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Era o verão de 1965, fim de julho, e eu estava em Salina, uma das ilhas Lipari, ao norte da Sicília.

Meu amigo Franco era dono de um barco de borracha Zodiac, com um generoso motor de 50 cavalos. A cada dia, saíamos de Salina na direção de outra ilha, Panarea, a própria Lipari ou, às vezes, Filicudi e deixávamos rolar uma hora (meia lata de combustível), parávamos para tomar banho no meio do mar e voltávamos.

Descíamos na água um de cada vez, porque seria perigoso deixar o barco à deriva. Ou então nadávamos os dois ao redor do barco, mas amarrados a ele por uma corda.

As Lipari são formações vulcânicas, e há fossas profundas, entre elas. Era disso que a gente gostava. Não havia vida marinha para ver, e, de qualquer forma, a gente não usava snorkel; o importante era a emoção de nadarmos na superfície de um abismo sem fundo.

Era uma ponta de inquietude, como se os monstros das profundezas pudessem, de repente, ser tentados pela vista, lá em cima, de nossas formas adolescentes? Talvez, um pouco. Mas, na minha lembrança, era sobretudo a sensação de algo imensamente maior que a gente e do qual a gente faria parte, bem ou mal: o verdadeiro sentimento oceânico que Romain Rolland sugeria a Freud que talvez fosse a origem do sagrado.

A memória prega peças, claro, e, na minha, é como se, em 1965, a gente já vivesse com a trilha sonora do disco de Lucio Dalla que sairia mais de dez anos depois e se tornaria quase um hino para minha geração de italianos: “Come È Profondo il Mare”.

Enfim, nesse mar profundo das Lipari, na semana passada, quatro baleias vinham nadando. Uma delas se enroscou numa grande rede de pesca e ficou parada, na superfície. Dois mergulhadores italianos trabalharam duas horas e conseguiram liberá-la —um cortando a rede e o outro nos afagos para que o animal esperasse, paciente.

Olhei o vídeo; pensei obviamente que somos capazes do melhor e do pior; e assim me lembrei de 1965.

Essa lembrança foi quase física, antes de mais nada, uma espécie de sentimento da água, que é difícil definir.

Para quem experimentou a água do Caribe ou se acostumou com ela, tanto a água do litoral leste do Brasil quanto a do Mediterrâneo parecem facilmente frias. E, de fato, é só no Caribe que consigo ficar 30 ou 40 minutos a 20 ou mais metros de profundidade sem roupa de borracha. Mas tanto faz, o estranho é que a lembrança do mar caribenho, que é quente, seja, mesmo assim, um lampejo de vida “fria”, de alguma forma —como se qualquer carícia da água fosse sempre fria.

Nunca me deparei com uma baleia e ainda menos com uma que eu pudesse ajudar. Mas meus encontros mais marcantes no mar sempre foram encontros com lampejos —às vezes inquietantes mas fascinantes como o surgimento inesperado de uma vida no caldo originário do mundo.

Vinte anos atrás, na República Dominicana, visitei o naufrágio antigo de um barco que transportara o necessário para a construção de uma estrada de ferro. A 15 metros de profundidade, na areia do fundo do mar, eu contemplava uma locomotiva a carvão que se transformara em matriz de uma barreira de coral; de repente, à minha esquerda, uma barracuda de dois metros passou perto e reto, sozinha, como o lampejo de uma espada na água, sem parecer sequer registrar minha presença.

Mais recentemente, no meio da baía de Negril, na Jamaica, aventurando-me numa caverna, acordei um tubarão galha-preta, que se virou e se afastou, de novo, num lampejo prateado.

O sentimento da água, sua carícia fria, nem sequer precisa ser molhada. “The Schooner Flight” (o voo da escuna —ou a escuna chamada voo) é, para mim, o mais lindo poema de Derek Walcott. Começa assim: um marinheiro, na luz e no ar ainda fresco do começo do dia, arranca-se da cama e do abraço quente de sua companheira, apaga a luz e vai embarcar na escuna que o espera. “This time, Shabine, like you really gone!”, desta vez, seu nego ruivo, tipo, cê tá indo embora de verdade.

Na luz ainda cinza, nas ruas ainda adormecidas pelas quais ele pede a proteção de Cristo, é como se Shabine farejasse a viagem que começa, o lampejo da aventura da vida que se renova.

Junto com a baleia de Salina, a grande notícia da semana foi a vitória dos ecologistas nas eleições municipais francesas. Será que a gente conseguirá, de repente, inventar outros lampejos de vida outras maneiras de pensar a vida e o que esperamos dela?

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