Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu Todas

Comunicação USP 1997

Não vai dar certo, né?

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Chego ao restaurante para a reunião e da porta já começo a torcer para o projeto dar errado. Seria uma entrada de dinheiro que resolveria minha vida por uns meses, mas o que é o dinheiro nessas horas?

Estava esperando qualquer coisa menos a beleza que me atormenta desde a adolescência e que me faz lembrar o pouco que aprendi sobre a Cruzada dos mauritanos. O jovem senhor que me esperava para uma reunião de negócios tirou meu corpo do automático e me devolveu, naquele breve espaço de tempo, a uma sensação similar à felicidade.

Notei pela maneira como ele tirou o casaco e dobrou as mangas que estava instaurada a tensão sexual. Então nem deixei que começasse a falar. Segurei delicadamente seu antebraço e disse: "Não vai dar certo, né?".

Imagem da fachada da Escola de Comunicações e Artes da USP com quatro palmeiras do lado direito, próximo de uma escultura prateada
Bruno Santos - 19.set.18/Folhapress

Não há por que começar um projeto envolvendo mil reuniões, advogados, infinitas discussões sobre valores, envios de notas, se em menos de duas semanas, talvez hoje, talvez agora, inevitavelmente vamos transar. Para que passar por isso? Sou do tempo em que se transava com pessoas do trabalho e com pessoas com quem pretendíamos trabalhar —e era uma maneira caótica e excitante de distrair a mente inflamada por tantos pensamentos intrusivos e penosos—, mas já fui bombardeada demais pelo Instagram e por todas essas normas de conduta conservadoras dos progressistas. Então, não, não vai dar certo.

Isso tudo eu só pensei. O que consegui fazer, como disse, foi segurar seu antebraço e falar "Não vai dar certo, né?". Aí usamos nossas duas horas de almoço para reclamar da vida, dos preços das frutas orgânicas nos supermercados, dos psicanalistas que não abrem a boca e de marcas de whey protein que estufam a barriga.

No fim da tarde, ele me escreveu dizendo que não conseguia trabalhar e precisava me dizer algo ao vivo. Dei meu endereço. No banho, encontrei partes do meu corpo que poderiam figurar numa exposição chamada "Desistência". Cuidei delas, pois sou uma feminista que fraqueja e ainda acredita no poder de uma vagina facilmente encontrada sem precisar de lanterna, cantil, bússola e maçarico.

O jovem senhor de beleza estonteante então chegou. Antes, no almoço, concatenava palavras e ideias com maestria e segurança. Vestia camisa de linho azul com uma boa calça de alfaiataria. Agora, meu Deus, o que era aquilo? Estava usando uma bermudona da Mizuno e uma camiseta velha em que se lia "Comunicação USP 1997". Entrou nervoso, andava para lá e para cá e avisou que nem ia tirar aquele tênis medonho porque estava atrasado.

Então contou que veio vestido daquele jeito porque precisava "ser quem era". Não que ele fosse apenas um jogador de bola muito bom, era também o "empresário que venceu". Agressivo, até. Na bola e na profissão. Tinha operado o joelho? Tinha. Sabia ser fofo? Sabia. Era até bonzinho demais. Mas não a ponto de me fazer enjoar dele. Pediu água, tomou e depois quis mais dois copos. Andava pela casa comovido —"é maior do que a minha". Contou como cresceu na empresa e afirmou algumas vezes que não tinha medo de mim. Falou que um dia vai parar com tudo. Tem sonhos, mas ainda não é a hora. Disse que um dia me contaria sobre seus sonhos (por favor, não). Falou, falou, andou, andou e quando deu a hora do futebol, foi embora.

Não é curioso como alguns homens ainda se sentem tão ofendidos com uma cantada? Tive um ataque de riso, passei pomada nos lugares que exagerei na depilação e fui dormir.

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