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Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

O fantasma da varíola

Amostras do vírus permaneceram armazenadas em dois laboratórios

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O vírus da varíola conviveu com a humanidade por milênios. Teria surgido nos primeiros agrupamentos agrícolas, no nordeste da África, há 10 mil anos.

A múmia de Ramsés 5º —morto em 1.156 a.C.— trazia na pele as cicatrizes das lesões características da varíola. Há evidências de que a doença já estava presente na China naquele tempo.

Introduzido na Europa no tempo dos romanos, o vírus provocou epidemias que coincidiram com os primeiros estágios da decadência do império. A que se disseminou na época de Antonino teria provocado milhões de mortes.

Altamente transmissível, a varíola ficou limitada à Euro-Ásia até o século 15, com taxas de mortalidade que chegavam a 90%. As Cruzadas levaram o vírus ao Oriente Médio, e as descobertas dos navegadores às Américas, ao Caribe e à África —por meio do tráfico de escravos.

Os britânicos usaram o vírus como arma biológica para subjugar os indígenas americanos que lhes eram hostis, estratégia que os espanhóis adotaram para acelerar a queda dos impérios asteca e inca e os portugueses para eliminar tribos inteiras no Brasil.

A doença chegou ao século 18 com índices de mortalidade que variavam de 20% a 60%. As crianças foram mais castigadas: 80% de mortalidade em Londres e 98% em Berlim.

Então, em 1776, o inglês Edward Jenner imunizou um menino com uma preparação obtida por escarificação das lesões de varíola presentes numa vaca. Estava descoberta a primeira vacina com vírus atenuado, que em dois séculos erradicaria a doença.

O último óbito aconteceu em 1978, na cidade de Birmingham, no Reino Unido. A fotógrafa médica Janet Parker adquiriu a infecção no laboratório da faculdade em que trabalhava, e faleceu um mês mais tarde. Em 1980, a OMS declarou extinta a doença. A vacinação se tornou desnecessária.

Apesar da erradicação, amostras do vírus permaneceram armazenadas em dois laboratórios de segurança máxima. Um deles, em Atlanta, no Centers for Disease Control; o outro, no laboratório Vector, em Novosibirsk, na Rússia.

Há anos, os especialistas discutem a conveniência de destruir esses estoques. Os favoráveis argumentam que a preservação traz a possibilidade de um acidente laboratorial ou de o vírus cair nas mãos de bioterroristas que o disseminariam em populações não imunizadas. Os contrários dizem que as pesquisas devem prosseguir porque não há como ter certeza absoluta de que a doença jamais retornará.

Essa posição ficou reforçada depois que uma instituição respeitável como o NIH (National Institutes of Health), dos Estados Unidos, localizou amostras virais armazenadas num dos laboratórios no campus da cidade de Bethesda, em 2014. Se um centro de pesquisas como o NIH não conseguiu garantir a segurança do material sob sua responsabilidade, os laboratórios russos e de outros países não terão cometido erros semelhantes?

Outros estão preocupados que o degelo no Ártico traga à tona corpos com o vírus ainda viável. Se partículas virais foram isoladas em múmias egípcias mantidas à temperatura ambiente, a preocupação não seria descabida.

Cada vez mais acessíveis, os avanços da biologia molecular podem permitir que um laboratório clandestino seja capaz de "redesenhar" o vírus ou de obter uma versão transgênica mais agressiva. Em 2016, pesquisadores canadenses anunciaram ter criado em laboratório o vírus da varíola equina, a partir de fragmentos de DNA.

Razões como essas pesaram na decisão do FDA (Food and Drug Administration), dos Estados Unidos, que acaba de liberar o tecovirimat (TPOXX), medicamento inibidor das proteínas que permitem ao vírus se replicar e infectar novas células. Diante da impossibilidade de testá-lo em seres humanos —por razões óbvias—, o FDA aceitou os testes realizados em coelhos e macacos, procedimento contrário às rígidas regras de aprovação do órgão. Com a administração da droga, mais de 90% dos animais resistiram à infecção.

Outro antiviral, o brincidofovir, que age por mecanismo diferente, está em vias de análise e aprovação prioritária.

Apesar de ainda existirem patrulhas de ignorantes, defensores de ideologias esdrúxulas contrárias às vacinações, em pleno século 21, a vacina desenvolvida por Jenner é considerada a descoberta de maior impacto na história da saúde pública mundial. Em 20 anos, evitou centenas de milhões de mortes, o sofrimento que as precede, as desfigurações da face e na alma dos sobreviventes.

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