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Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

Descrição de chapéu

Rio Negro

Ele segue seu curso, impávido, tão alheio à nossa presença

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Pegue o mapa do Brasil. Olhe para o canto esquerdo da parte superior, na direção da Colômbia e da Venezuela. A linha de fronteira não desenha a cabeça de um cachorro?

A Cabeça do Cachorro é uma região maior do que Portugal. Lá, estão as florestas mais preservadas do país. Sobrevoá-las é viver o êxtase.

Do avião, a periferia de Manaus é uma mancha de construções com tentáculos que invadem a mata, como um tumor maligno. São casinhas de alvenaria que se agrupam atabalhoadas, enquanto outras se alinham em conjuntos residenciais. Entre elas, o teto das fábricas da Zona Franca.

Logo, as casas se distanciam umas das outras e a floresta se espalha a perder de vista. São 360 graus de mata virgem, parece o oceano. No alto-mar, entretanto, a paisagem é imutável, melancólica, em minutos o olhar do viajante se aborrece, enquanto horas de observação da floresta só fazem aumentar seu encanto.

Publicada neste domingo, 8 de dezembro de 2019 - Líbero/Folhapress

As incontáveis tonalidades do verde lembram um tapete uniforme. As copas das árvores se acotovelam sem deixar uma nesga de espaço vazio. Dá a impressão de que uma flecha disparada do avião ficaria espetada no dossel. Inesperadamente, porém, a floresta majestosa estanca e abre espaço para caatingas e campinaranas de vegetação baixa.

À direita da aeronave, o rio Negro segue seu curso, impávido, tão alheio à nossa presença quanto esteve há 2.000 anos, na chegada dos indígenas, ou na invasão escravocrata dos homens brancos, quatro séculos atrás. 

Do lado oposto, os rios fazem a alegria da paisagem. Serpenteiam brincalhões para a esquerda e a direita, desaparecem entre as árvores para emergir mais à frente e formar lagos com margens que se estreitam em gargantas angustiadas, na tentativa infrutífera de deter o caminho das águas.

Mais acima, o Negro se transforma numa imensidão alagada em circunvoluções caprichosas, que se intrometem na mata como dedos monumentais que se estendem por muitos quilômetros, decididos a esganar as nesgas de floresta que teimam em resistir ao abraço fatal. São as ilhas Anavilhanas, o segundo maior arquipélago fluvial do mundo que, em extensão, perde apenas para o de Mariurá, localizado rio acima, nas proximidades de Barcelos, a antiga capital do estado.

Da nascente à foz, quando suas águas escuras se misturam relutantes com o Solimões barrento, para formar o Amazonas, o Negro percorre 1.700 quilômetros, quase a distância de São Paulo a Salvador. É um dos três maiores rios do mundo, no Brasil perde apenas para o Amazonas. O volume de água em seu leito é maior do que o de todos os rios europeus reunidos.

Na seca emergem praias com os troncos e galhos retorcidos, que Frans Krajcberg representou em esculturas. As águas baixam a ponto de encalhar nos bancos de areia a embarcação do navegador mais experiente. Na estação das chuvas, sobem de 12 a 15 metros, inundam a mata e criam milhares de igapós e igarapés. 

Do alto, o visitante desavisado é capaz de jurar que homem algum ousaria pôr os pés naquela imensidão inóspita. Erro grave, a floresta é habitada. Embora a densidade populacional seja de 0,25 habitante por quilômetro quadrado, existem centenas de povoados na Cabeça do Cachorro. Neles, vivem 23 etnias 
indígenas, distribuídas em agrupamentos com meia dúzia de famílias e aldeias com centenas de moradores.

Mil quilômetros rio acima, a topografia plana do baixo e do médio rio Negro é surpreendida pela serra de Curicuriari, com as montanhas que desenham a Bela Adormecida, nome escolhido por lembrar a silhueta de uma mulher deitada, com as mãos cruzadas sobre o peito.

É o cartão postal de São Gabriel da Cachoeira, construída pelos indígenas antes da chegada dos brancos na margem direita do Negro, a 1.100 quilômetros de Manaus, distância de São Paulo a Porto Alegre.

Sede de um município com 45 mil habitantes, é a maior cidade indígena do país, a única que adotou como oficiais outras três línguas: nheengatu, tucano e baníua. Nas ruas asfaltadas transitam motos, táxis e pedestres castigados pelo sol inclemente. Cerca de 80% são indígenas que migraram das calhas dos afluentes do Negro.

São Gabriel foi nosso destino para filmar com a produtora Uzumaki um documentário sobre a vida na cidade, a saúde indígena e o papel do Exército, única presença do Estado nos confins da Cabeça do Cachorro, temas da próxima coluna.

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