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Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

Foi-se o tempo de dramas existenciais, amores perdidos e lutas de classe

Nunca fui dada a filmes de zumbis, mas 'Reality Z' apresenta um retrato ácido e instigante do Brasil de 2020

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Nunca fui dada a filmes de zumbis.

A sucessão previsível de homens e mulheres sucumbindo aos ataques de mortos-vivos sempre me pareceu tediosa. Mas coube a meu irmão, Claudio Torres, dirigir “Reality Z” para a Netflix, versão brasileira de “Dead Set”, série britânica de Charlie Brooker, o criador de Black Mirror.

O sentimento fraterno me fez encarar a saga de terrir que, talvez, não seja recomendável aos muito doutos leitores da Folha de S.Paulo.

Os cinco primeiros capítulos, fiéis à série original, têm atuações sofríveis, salvo a da mocinha Ana Hartmann, capaz de manter, em meio aos gritos risíveis de desespero que a cercam, o sentimento de terror dos que ainda não foram acometidos pelo mal.

E é com alívio que vemos o elenco inicial se transformar em capirotos, com o desempenho reduzido a estertores sob pesada maquiagem, abrindo caminho para a segunda leva de heróis.

Vencida a primeira etapa, assumem a trama um político corrupto e sua vil assessora, os excelentes Emílio de Mello e Júlia Ianina; um policial cheirador, o impagável Pierre Baitelli; uma líder militante, a grata revelação Luellem de Castro; a idealizadora do reality show que dá nome à série, encarnada por Carla Ribas, e o miliciano assassino de Thelmo Fernandes.

Na sua segunda metade, “Reality Z” apresenta um retrato ácido e instigante do Brasil de 2020.

Protegidos no estúdio de um programa do gênero “BBB” e “A Fazenda”, cujo cenário imita o Olimpo, o grupo de sobreviventes se une para reorganizar uma sociedade possível, cercados por zumbis ávidos por carne humana.

As famigeradas regras de eliminação e aceitação do jogo de entretenimento midiático passam, então, a reger as leis que darão direito a permanecer a salvo no interior do estúdio, ou não. Logo, a frágil democracia fundada em meio à aflição repetirá os eternos vícios de poder do velho mundo. Racismo, corrupção, violência, luxúria, posse de armas, pena de morte e alianças espúrias são o cardápio de horrores que compõem a tragicomédia da reta final da série.

A afirmação de que a realidade atual está ganhando de lavada da ficção já virou lugar-comum. E anda difícil, de fato, escrever livros ou roteiros capazes de dar conta do enredo fantástico do noticiário. Quando terminei de ver “Reality Z”, no entanto, tive a certeza de que o terror trash é o único gênero capaz de traduzir o estupor corrente.

Foi-se o tempo dos dramas existenciais, dos amores perdidos, das lutas de classe e do que resta de humanidade. Vinde a mim a pandemia, as covas rasas, a milícia, o genocídio, as queimadas, o gabinete do ódio, as passeatas antidemocráticas, os rojões no Supremo, o AI-5, as encenações kukluxklânicas pelas noites de Brasília e o líder possesso, a cavalo, na praça dos Três Poderes. Chama o Zé do Caixão!

E olha que vi “Reality Z” antes da assombração de trem fantasma, o advogado Frederick Wassef, ganhar as manchetes de jornal; antes da sobrenatural materialização de Queiroz na Atibaia de sempre; antes da missa satânica de Sara Winter; do desaparecimento abracadabra de Weintraub e do lucro sim salabim da chocolateria do Zero Flávio.

Os zumbis, ao contrário das múmias, bruxas e vampiros, são um mito recente. Em 1968, o diretor George Romero popularizou em definitivo o filão com o filme “A Noite dos Mortos-Vivos”. Mas a lenda das terríveis criaturas teria surgido antes, em 1929, como lançamento de “A Ilha Mágica: Fato e Ficção”, relato investigativo do jornalista americano William Seabrook sobre os cultos de magia da cultura criolla das Antilhas.

No livro, Seabrook descreve, com altas doses de sensacionalismo, os rituais sincréticos de religiões de origem africana, aborígene e católica que presenciou, despertando a curiosidade e o preconceito da América puritana. A obra, campeã de vendas, deu início à febre.

No capítulo “Magia Negra”, passado no Haiti, a capital vodu do Caribe, o autor menciona “um corpo humano sem alma, morto, mas retirado de seu túmulo e animado de uma aparência de vida para fins de feitiçaria [...]. Os que possuem poder para tanto procuram um túmulo recentemente escavado, exumam o corpo antes que ele se decomponha, dão-lhe uma aparência de vida e fazem dele um escravo, às vezes para mandá-lo cometer crimes”.

É ou não é o caso de Fabrício Queiroz, dormindo sentado, encostado naquele colchão do muquifo de Atibaia, no aguardo das ordens do Anjo que lhe dirá o que fazer da própria alma?

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