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Por que logo naquela civilização tão periférica, tão desigual, se foi tão feliz?

A mesma gente que inventou o samba fez dele uma arma contra as intempéries

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Crianças, houve um povo que, reza a lenda e as revistas de história, foi feliz. Mas isso já faz muito tempo, dizem os arqueólogos e os escafandristas.

Isso foi antes do fim do mundo, antes do dilúvio, antes do recomeço, numa época da qual sobrou tão pouca coisa, no terceiro planeta do Sistema Solar, mais precisamente no hemisfério sul, mais precisamente num cantinho ao leste da América do Sul, espremido entre as montanhas e o oceano Atlântico. 

Ali houve um povo, crianças, que vivia em volta de uma baía disputada por portugueses e franceses, tamoios e temiminós. Onde o olho de Estácio de Sá foi atravessado por uma flecha, onde tentaram em vão criar uma França Antártica, onde tentou em vão se instalar a corte portuguesa. Ali nasceu uma cidade batizada de Rio, porque a enorme baía parecia a foz de um rio que nunca existiu. Uma cidade que leva um mês no nome, talvez a única, e onde, por volta desse mês, seu povo costumava ser irremediavelmente feliz.

Não fazia sentido. Não tinham nem água limpa. Das torneiras saía uma água barrenta e malcheirosa —quando saía. No poder, alternavam-se pastores evangélicos e milicianos mercenários, quando não pastores milicianos. Quando chovia, os morros desciam ladeira abaixo arrastando casas e carros. Era uma cidade de sobreviventes. 

Mas nunca, apesar de tudo, em toda a história desse planeta extinto, se foi tão feliz quanto no alto das suas montanhas durante alguns dias do verão.

O mesmo povo que inventou o samba fez dele uma arma contra as intempéries. Multidões desciam ladeiras cantando seus hinos de louvor aos ancestrais e aos que estão por vir: marchas-rancho, samba-reggaes, choros-canção. As mesmas pirambeiras tão acostumadas a virarem rios de barro levavam cachoeiras de gente em êxtase, enxurradas de gente em estado líquido.

Até o sol inclemente baixava em respeito ao milagre da multidão em festa, garantem os arqueólogos. Os moradores surgiam nas janelas e por alguns segundos a cidade inviável fazia sentido. Por algumas horas, aquele povo se fazia grande porque tinha descoberto a mais avançada da mais avançada das tecnologias, e todos se olhavam cúmplices, sabendo perfeitamente que viviam ali o apogeu da cidade, da civilização, quiçá da espécie. 

E por que ali, crianças? Por que logo naquela civilização tão periférica, tão desigual, se foi tão feliz? Não sei. Pode ser que tudo não passe de um delírio de algum arqueólogo.

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