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Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

'Alô, filho, você quer mesmo sair?'

Quando queremos ter filhos, é importante ter o consentimento deles

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Se a vida é um vale de lágrimas, por que não processar os pais por nos terem trazido ao mundo?

Se o leitor nunca pensou nessa hipótese, isso pode significar duas coisas. Primeiro, que é uma pessoa sã. Segundo, que nunca leu a saga do indiano Raphael Samuel, 27, que tentou processar os progenitores, segundo o jornal “The Guardian”.

Sim, Samuel confessa que tem uma excelente relação com eles. Mas há, digamos, um “pecado original” que o rapaz não pode perdoar: ele nasceu sem dar o seu consentimento. Uma indenização, ainda que simbólica, seria uma forma de fazer doutrina: quando queremos ter filhos, é importante ter o consentimento deles.

Por essa altura, o leitor inteligente que lê as minhas colunas já deve ter feito uma pergunta fundamental: como obter esse consentimento? E, já agora, em que fase?

Impressão 3D de feto de 22 semanas, em laboratório em São Paulo; nova tecnologia de impressão 3D de ultrassom ajuda em diagnósticos intrauterinos e pode virar souvenir para os pais - Marisa Cauduro/Folhapress

Será que devemos tentar chegar à comunicação ainda antes da fecundação do óvulo, ou seja, mantendo uma conversa solitária com a nossa própria genitália? Ou só depois, transformando os aparelhos de ultrassom em potentes celulares que nos permitam uma ligação direta com o feto? (“Alô, filho, você quer mesmo sair?”).

A ciência terá aqui uma palavra importante. Mas, conhecendo o narcisismo da espécie e a tendência irresistível de marchar pelas causas mais improváveis, não é de excluir que adolescentes de todas as idades, frustrados com a vida e com a necessidade de escovar os dentes, encontrem em Raphael Samuel um modelo (de negócio).

Antigamente, os pais poupavam para a universidade dos filhos. Hoje, convém poupar primeiro para a indenização que eles nos vão pedir. Assustado, leitor?

Não esteja. O Natal está à porta. E sempre que a quadra se aproxima, eu faço a minha peregrinação anual a Frank Capra. O filme dá pelo nome de “It’s a Wonderful Life” (1946) mas a tradução brasileira é ainda mais preciosa: “A Felicidade Não se Compra”.

No filme, encontramos um homem, George Bailey (divino James Stewart), que por razões financeiras pensa em suicidar-se.

É então que surge um anjo, Clarence, disposto a fazê-lo mudar de ideias. Não de uma forma literal, argumentando com o desesperado George para que ele não pule da ponte. Mas mostrando-lhe, como se existisse um filme dentro do filme, o que teria sido a vida dos outros se ele, George, nunca tivesse existido. Seriam vidas mais pobres e, em certos casos, nem sequer teriam acontecido.

Perante essa visão desértica, George decide viver. Ele aprende, talvez pela primeira vez, que uma vida não se resume à visão solipsista que temos dela (quem sou eu? Como me sinto? O que desejo? Sempre eu, eu, eu).

Falar da “nossa vida” é usar a primeira pessoa do plural, não do singular. Eu sou um fardo, uma alegria, um horror e uma esperança para os outros na exata medida em que os outros são tudo isso para mim. Ou, abreviando, a vida é dar e levar.

Impressao 3D de um feto de 32 semanas; nova tecnologia de impressao 3D de ultrassom ajuda em diagnósticos intrauterinos e pode virar souvenir para os pais - Marisa Cauduro/Folhapress

No limite, ver o filho a pedir uma indenização aos pais por ter nascido faz tanto sentido como pedir uma indenização ao filho por ele não querer estar cá. Quem disse que só o filho pode ter razões de queixa?

O problema dos cálculos meramente utilitaristas é que eles são dotados de uma espantosa flexibilidade. E da mesma forma que os filhos avaliam os seus danos por terem nascido, os pais podem atuar da mesma forma.

Investiram tudo no delfim –patrimônio genético, tempo, dinheiro, sanidade e expectativas legítimas de que ele seria um adulto.

Mas o ingrato, no fim das contas, ainda quer fazer contas. Se isso não é motivo para uma indenização pesada, só um anjo nos pode salvar.

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