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Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Apesar de lidar com Holocausto, filme é sinistro pela ausência de drama visível

'Zone of Interest' mostra que em Auschwitz só entramos como turistas

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Quando lemos memórias ou testemunhos dos filhos de nazis ilustres, um traço é comum: os pais eram pessoas encantadoras. Gentis. Disponíveis. Afetuosas. Divertidas.

E o trabalho, se a palavra "trabalho" tem sentido, raramente entrava nas conversas. As crianças só sabiam que o pai tinha uma posição importante no Reich e que a mãe era o suporte emocional do seu marido, como boa dona de casa ariana.

Claro que, a certa altura, o mundo colapsa. E a pergunta da descendência ecoa para o resto das suas vidas: como era possível serem um encanto em privado e monstros em público?

É essa pergunta, é esse paradoxo que o filme de Jonathan Glazer, "Zone of Interest", encena para nós. Com estreia marcada para breve no Brasil, é um dos grandes filmes do ano e, aviso já, este texto contém spoilers.

Não muitos, admito, até porque o filme, apesar de lidar com o Holocausto, é sinistro pela ausência de drama visível.

No centro da história temos a família de Rudolf Höss, o comandante de Auschwitz, e as rotinas do cotidiano na casa onde escolheram viver.

A localização da casa, essa, pode ser desconfortável para alguns espíritos: fica ao lado do campo de extermínio. Mas um muro alto e um jardim bem tratado permitem a todos uma vida tranquila. Até há uma piscina para os pequenos se refrescarem no verão polonês.

Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 5 de fevereiro de 2024 - Angelo Abu/Folhapress

Já Rudolf Höss cumpre sem falhas o arquétipo do nazi doméstico: de manhã, despede-se da mulher, sai de casa e entra na porta do lado.

No fim do expediente, regressa à casa e tem o cuidado de tirar as botas empoeiradas antes de entrar. É hora de brincar com os filhos e de ler histórias para eles antes de dormirem.

Em termos conjugais, sentimos que o fogo da paixão já conheceu melhores dias. Mas mesmo quando comete os seus pecadilhos, Rudolf tem o cuidado de se lavar bem longe da mulher.

E, antes de recolher ao quarto, o homem apaga todas as luzes que ficaram ligadas. Consciência ecológica ou preocupação econômica? Em qualquer dos casos, é uma atitude exemplar.

O quadro é idílico, ou quase, porque há um foco de dissonância que perturba o cenário: o som que escutamos ao fundo, do outro lado do muro. Gritos. Tiros. O ladrar insano dos cães.

Também há um cheiro estranho, sobretudo quando as chaminés do campo expelem fumo negro.

São esses sons, é esse cheiro que levará a mãe da senhora Höss a abandonar a casa na primeira noite da sua visita. O que se tornou normal para a filha é intolerável para a mãe.

Sempre assim foi: o mal é uma questão de hábito. De tal forma que, ao ser confrontada pelo marido de que ele recebeu ordens para ocupar uma nova posição em Berlim, a senhora Höss recusa acompanhá-lo.

Recusa, no fundo, deixar o lugar onde é feliz e onde educou as crianças. "Temos tudo na porta de casa", diz ela, com espírito prático, sem se aperceber da ironia desumana da frase. Têm tudo na porta de casa.

Filmes de ficção sobre o Holocausto? Confesso as minhas reservas. Não sou cliente de Steven Spielberg ("A Lista de Schindler"), Roman Polanski ("O Pianista") ou das pornografias de Alan J. Pakula ("A Escolha de Sofia") e Roberto Benigni ("A Vida é Bela"). Há experiências que são literalmente infilmáveis.

Abro uma exceção para "O Filho de Saul", do húngaro László Nemes, e agora entendo melhor por quê: o filme de Nemes, ao colar a câmera no rosto do protagonista, também oculta mais do que mostra.

O terror do Holocausto está no rosto de Saul, nos seus gestos, nas suas demandas, nas suas alucinações. É através dele que imaginamos o inimaginável.

Jonathan Glazer, com "Zone of Interest", vai ainda mais longe, filmando apenas a banalidade dos carrascos ou dos cúmplices, indiferentes ao horror que existia dentro dos campos.

E quando Glazer se aventura para o interior desse território proibido, é apenas para reforçar a impossibilidade de filmar o que aconteceu 80 anos atrás. Tudo o que vemos é o atual museu de Auschwitz e o trabalho das suas funcionárias, aspirando o chão e limpando as vitrines onde se acumulam os despojos das vítimas –sapatos, malas etc.– antes de os turistas chegarem.

É uma poderosa metáfora: por mais fértil que seja a imaginação humana, em Auschwitz só entramos como turistas.

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