João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

João Pereira Coutinho
Descrição de chapéu terrorismo Rússia

Precisa desenhar para explicar que dois Estados e Hamas são contraditórios?

Quando a realidade é excessiva, irracional, desumana, a mente se refugia em explicações familiares e dissonâncias cognitivas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Razão tinha o poeta: os seres humanos, de fato, nunca suportaram demasiada realidade. Quando a realidade é excessiva, irracional, desumana, a mente refugia-se em explicações familiares, efabulações, dissonâncias cognitivas.

Reparei no fenômeno, pela primeira vez, no 11 de setembro de 2001. Osama bin Laden declarava, com todas as letras, a sua Jihad contra os infiéis?

Diante de um campo de batalha, três macacos tapando seus sentidos com as mãos: um fechando a boca, outro os ouvidos  e o terceiro, os olhos.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 17 de outubro de 2023 - Angelo Abu

Osama era alguém maluco e primitivo. Ele era, literalmente, um homem das cavernas.

Ou, então, o terrorismo só existia por causa da pobreza, da exploração, dos Estados Unidos, dos extraterrestres.

Osama falava. O auditório ocidental falava por cima, incapaz de escutar o som cristalino que vinha das trevas.

Com Vladimir Putin, a mesma coisa: o tirano nega, até agora, o direito à existência da Ucrânia, que será sempre inseparável da mãe Rússia?

O auditório, incapaz de entender a mundividência do homem, prefere versões benignas: a culpa é do alargamento da Otan para leste ou das pretensões "europeias" de Volodimir Zelenski, por exemplo.

Como escreveu o historiador Robert Kagan, um diplomata do século 19 reconheceria de imediato as ações de Putin como o mais puro imperialismo territorial.

Para os homens do século 21, essa hipótese é tão exótica como, sei lá, a Inquisição ou o canibalismo. "Tem de haver outra explicação", dizem eles, em estado atordoado.

Mas a dissonância cognitiva mais brutal apareceu agora, depois da barbárie cometida pelo Hamas em Israel. No Sunday Telegraph, Einat Wilf, uma voz da esquerda israelense, tem até um nome para o fenômeno: o "westplaining".

Escreve ela: uma parte do Ocidente que marcha nas ruas a favor dos palestinos projeta sobre o Hamas um velho figurino, recusando ou ignorando o que o Hamas defende.

Para esse auditório crédulo, que age de boa-fé —uma vez mais, psicopatas ou antissemitas não jogam nesse time—, o Hamas é uma espécie de Fatah mais agressiva, que apenas luta pelo fim da ocupação e por um Estado palestino independente.

Esses dois objetivos estão certos, mas não contam tudo. Contar tudo é relembrar que o Estado que o Hamas defende pressupõe o fim de Israel. A ocupação, nesse contexto, é o próprio estado judaico, não a sua presença na Cisjordânia —uma presença parcial, desde os Acordos de Oslo— ou em Gaza —que terminou com a retirada unilateral de 2005.

Esse objetivo foi claramente articulado na Carta do Hamas de 1988. Entre exortações à matança de judeus e referências respeitosas aos "Protocolos dos Sábios de Sião" —documento forjado na Rússia czarista, "provando" uma conspiração judaica para dominar o mundo e assim justificando os pogroms contra judeus—, o Hamas defendia um Estado teocrático em toda a Palestina.

Só em 2017 o grupo apresentaria uma nova "carta" que, no essencial, repete o objetivo estratégico da antiga: ao mesmo tempo que aceita um Estado palestino no território árabe que existia antes da guerra feita em 1967, o controle total da Palestina permanece um desejo intocado —"do rio [Jordão] ao mar [Mediterrâneo]", ou seja, sem Israel no meio.

É esse slogan que as massas acéfalas repetem nas passeatas genocidas. Elas imaginam, sempre na versão benigna, que estão defendendo a solução dos dois Estados —e não a eliminação de um deles, Israel.

Será preciso um desenho para explicar que os termos "dois Estados" e "Hamas" são uma contradição insanável?

No seu artigo, Einat Wilf lembra os "apaziguadores" britânicos que, perante Hitler, tentaram racionalizar o comportamento do líder nazista.

Não, ele não queria alargar o "espaço vital" da Alemanha, ao contrário do que afirmara no seu "Mein Kampf", diziam eles. A dissonância cognitiva era a mesma. As palavras de Hitler deveriam ser reescritas pelas fantasias de um auditório apavorado. Deu no que deu.

A inexistência, até hoje, de um Estado palestino independente pode ser explicada por muitos fatores. Da rejeição árabe à insana construção de assentamentos israelenses na Cisjordânia, a lista é longa.

Mas a solução dos dois Estados, a única solução realista ao conflito, só é pensável quando se aceitam os dois Estados.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.