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Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

O brilho mortiço no olhar

Muita gente compartilha individualidades, sem aproveitar a convivência

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O brilho intermitente iluminando as faces rígidas das crianças nada deixava a dever a imagens apavorantes de um filme de terror. O olhar fixo, em inocentes rostos infantis, acentuava a tétrica sugestão de vidas rapidamente sugadas daqueles corpos plasticamente frágeis e belos.

Mesmo frente a frente, em lados opostos da mesa, nenhum deles demonstrava a menor percepção da existência do outro. E menos ainda da existência dos dois adultos a seu lado, ou dos outros seres humanos que povoavam aquela bolha de mundo.

O cenário, no entanto, era prosaico. Apenas um restaurante como tantos, numa noite como tantas, numa cidade no planeta. A única diferença seria, se tanto, o observador: o turista solitário, que, na falta de companhia em sua refeição durante a viagem, vasculhava o mundo ao redor enquanto aguardava seu prato. ​

A paisagem era semelhante à que vislumbrava em tantas viagens. Em certas mesas, casais ou grupos conversavam alegremente. Em outras, comensais trocavam palavras mais sisudas de encontros de negócios. Já os solitários se escoravam em seus aparelhos celulares, que há tempos substituíram livros, revistas e jornais.

Mas o que mais horrorizava nosso observador não eram os casais ou amigos isolados em seu mundo celular. O chocante era aquela visão das duas crianças apartadas dos pais, submersas em seus jogos eletrônicos (ou filmes?) que jorravam luzes e sombras em seus rostos.

O restaurante está situado numa grande cidade, tem certa elegância na decoração amena e no tom discreto das vozes ao redor. A iluminação é delicada, favorece a aproximação e até a intimidade dos que dividem a mesa. Mas não é o que acontece naquela mesa específica, que, para desespero de nosso observador, agride diretamente seu campo de visão.

Nela, ocupando lados opostos, estão os que parecem ser os pais das crianças, mal confabulando, mal se dando conta da mútua presença.

Nos outros dois lados do quadrado, um menino e uma menina de menos de dez anos estão isolados do mundo, protegidos por enormes fones de ouvido dignos de pilotos de avião e pelas telas de tablets, janelas abertas para algum outro mundo, devidamente eretas por firmes suportes. 

Naquele ambiente de iluminação tênue, a luz dos aparatos tremelica no semblante absorto de cada criança, como se elas fossem só imagens estáticas de um videogame pausado.

Pelo semblante oriental, numa capital ocidental, parecem estrangeiros (mas impossível saber, mal se ouvem palavras que denunciem seu idioma). É o que se espera de uma família de turistas? Ou mesmo de uma família de locais?

Em qualquer caso, parece assustador. O viajante —ele também, reconhece quase envergonhado, empunhando um celular, mal hesitando em registrar aquela imagem fantasmagórica— viaja agora no tempo, lembrando de momentos solitários no passado. 

Em suas idas sem companhia a restaurantes, sempre teve um livro a seu lado. Sempre ocupou os momentos vãos entre um prato e outro para adiantar uma leitura.

Fazer o mesmo agora com apoio de uma tela, não mais de uma página de papel, não lhe parecia um desvio. Podia jurar que não usava o tempo para xeretar mídias antissociais e aplicativos do gênero, apenas para ler os livros que ali armazenava, ou, se tanto, as últimas notícias de jornal sobre o mundo onde agora vagava.

Mas rebuscando na memória também flagrou momentos em que, numa relação desgastada, a mesa do restaurante fora apenas mais um lugar para compartilhar o vazio silencioso de uma relação já perdida, ou a conversa ociosa com colegas tão desinteressantes quanto o almoço do restaurante barato da esquina.

A visão da família, daquele halo pálido desenhando o contorno das crianças, no entanto, o perturbava especialmente. 

Se eram turistas ao final de um dia de passeios, por que não aproveitar aquele momento para sorver entre eles, filhos inclusive, as lembranças ainda frescas das novidades vividas? Se eram moradores da cidade, se todos passaram o dia em seus respectivos afazeres, por que não aproveitar o momento de convivência, de intimidade, de vida em comum?

Em vez disso, os adultos dividiam sua entediada solidão protegidos pela gente em plena vida no restaurante; e os filhos mergulhavam em sua mecânica individualidade emoldurados pelos fones de ouvido e pela luz mortiça que nublava seus olhares.

“Que viagem maluca a dessa gente”, suspira nosso viajante antes de reacender, resignado, a tela de seu celular. 

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