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Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

Meu voto de um respeitoso conforto

Quem acha que serviço sofisticado é frescura se esquece dos robôs de amanhã

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Quando o sono se torna tão imperioso quanto o alerta paterno de que é hora de dormir, meu filho de nove anos pede alguns minutos para uma última tarefa. Ele então redige, com letra garrafal e urgente, um bilhete que intitula “De: M. de ontem/Para: M. de hoje”.

Ali coloca as instruções que não quer esquecer para o dia seguinte, relativas aos desenhos que faz, e que checará ansioso pela manhã.

São orientações precisas. Copiar o personagem do videogame que estará em sua história em quadrinhos. Não esquecer a fala da segunda página. Desenhar a estupidez de hoje de Donald Trump —para meu filho, Trump é indispensável em qualquer história que precise de um ser estúpido, e poucos são tão caricaturáveis —, com aquele topete plástico, a pele cor de laranja (“pai, a pele é com esse lápis Caran d’Ache”), o olhar tresloucado.

Vendo as instruções que meu filho de ontem deixou para meu filho de hoje, e sendo agora o eu de ontem, escrevendo para o leitor de hoje, imagino qual bilhete escreveria para o viajante de 2020 e depois.

Talvez pressionado pela idade, hoje busco tanto a aventura quanto o conforto. E não vejo oposição necessária entre uma  e outra: um jovem mochileiro aventureiro também necessita —e merece— de conforto, ainda que à sua maneira.

Claro que aos 20 anos temos menor urgência de um lobby com sofás do italiano Vico ​Magistretti ou poltronas Sérgio Bernardes. Embora não imagine um adolescente sincero que não adorasse jogar sua trouxa, seu tênis fedido, suas acnes em flor e seu corpo dolorido de mochilão num assento desses (não porque são chiques, porque são deliciosos).

A noção de conforto varia com a expectativa do público, mas todos o merecem. Um restaurante, uma pousada, um aeroporto deveriam passar por controles do conforto que oferecem para o viajante.

Uma cama simples pode muito bem ser acolhedora num hostel, mesmo sem lençóis de algodão egípcio. Da mesma forma, a decoração e o nível de ruído podem ser péssimos em hotéis de luxo, quando exibem cores acachapantes, janelas que não filtram ruídos e lobbies impessoais e agressivos. Esses, pelo preço que cobram, são ainda menos confortáveis que um hostel acolhedor.

O luxo como desperdício e ostentação sempre foi cafona, inclusive quando é chique. Mas, quando de bom gosto, pode ser um sinal de extremo refinamento, de respeito pela construção coletiva da qualidade nos mais diversos campos.

Para mim, que não posso viver no luxo, não deixa de ser divertido —como presente de viagem ou celebração especial— usufruir momentaneamente de ambientes e tratamentos que resumem séculos de depuração de altos padrões de serviço.

Para aproveitar esses momentos, o maior obstáculo não é o ritual do luxo em si, mas a convivência com os que têm aquilo como rotina. 

São em grande parte magnatas, milionários e mafiosos que representam o pior da espécie humana, mas que, condizendo com a tosca humanidade, estão no topo da cadeia alimentar, sugando os 99% da população com toda sua ganância e grosseria. Isso atrapalha bem.

Um pensamento humanitário poderia concluir que oferecer um serviço de primeira para essa gente reduz os trabalhadores do setor a uma condição humilhante.

Não necessariamente. Respeito e admiro os profissionais que nos servem pelo mundo. Porque sei que eu mesmo, como quase todo mundo (fora banqueiros, mafiosos, milicianos e quetais), sou um serviçal do consumidor que me lê. Como todo profissional, temos um compromisso de entregar uma tarefa pela qual o público nos paga e merece o melhor.

Um concierge, uma camareira, um garçom e um sommelier formam uma cadeia de relações que representa um sentido de convivência específico e caro à nossa infeliz espécie. Preciso entender que o comissário de bordo que hoje me serve amanhã poderá ler meus artigos com o mesmo rigor crítico que eu tenho ao ser atendido.

Quem, achando combater supostos excessos da sofisticação, critica os serviços refinados, esquece que o oposto disso é a fila do self-service —e só por enquanto. Logo mais os serviços robotizados mostrarão que tanto os garçons de hoje quanto o self-service são menos eficientes e baratos que uma máquina fria.

Não vejo saídas melhores. Mas, enquanto estamos aqui, sonho com respeito e conforto. Seja em que ambiente ou faixa de preço for, um respeitoso conforto! É minha mensagem de ontem, no ano que praticamente começa hoje, para vocês de amanhã.

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