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Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

O diagnóstico de autismo se transformou numa tendência de estilo hype

Inteligência e memória de gênio são traços com grande vocação a ferramenta de alto valor de mercado no capitalismo

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O conceito de tendência de comportamento não pode ser confundido com moda de comportamento. Esta, quando alçada à condição de tendência -conceito de vocação sociológica que transcende a alma mesquinha do marketing-, confunde fetiches de riquinhos -como salvar crianças na Nigéria num sabático ou pedir demissão de empregos porque não encontram "propósitos"- com movimentos sociais não feitos para consumo imediato de nichos afluentes, apesar de movimentar o mercado de bens e gestos.

Toda tendência de comportamento tem vocação a se tornar commodity. Uma tendência atual que merece a nossa atenção é a do autismo como moda de comportamento hype.

"O autismo tá bombando!" Ouvi essa frase outro dia de um profissional na área. Como o que ontem era um diagnóstico psicopatológico se transformou numa tendência de estilo de vida hype? Atenção para o componente altamente irônico da seguinte afirmação: agora todo mundo quer ter um filho autista.

Talvez hoje valha mais do que um filho trans no mercado das vanguardas de comportamento. Como um sofrimento humano gigantesco pode se transformar numa commodity hype de comportamento?

A série sul-coreana "Uma Advogada Extraordinária", da Netflix, ilustra esse fenômeno. Sinopse básica: brilhante advogada autista, com inteligência muito acima da média e capacidade de memória monstruosa, sofre com dificuldades de relacionamento.

A sinopse acima ilustra claramente a fetichização do sofrimento de uma psicopatologia. Inteligência e memória de gênio, traços com grande vocação a ferramenta de alto valor de mercado no capitalismo contemporâneo calcado em "conhecimento" -com aspas sim-, apontam para a tendência de fazer do autismo um "plus" com qualidades cognitivas invejáveis. O filme "O Contador", com Ben Affleck, já fazia de um autista um assassino profissional, e contador, como ninguém.

Ali já aparecia a grande qualidade autista para o mercado de bens e gestos: ser concentrado. Nossa advogada brilhante sofre com dificuldades de relacionamento. Alguém poderia dizer, com propriedade, quem hoje não sofre com dificuldades de relacionamento? Tal tipo de dificuldade pode ser o preço a pagar para você ser um gênio, não? Além do fato que relacionamentos somam menos ao modelo de sucesso no século 21 do que inteligência e memória somam ao mercado de trabalho.

A suspeita de que altas qualidades cognitivas podem caminhar passo a passo com dificuldades afetivas no mundo já existia com relação à melancolia. Do ponto de vista do melancólico, só pessoas superficiais seriam alegres. A questão é que a melancolia caiu de moda porque ela não oferece qualidades cognitivas que agregam valor ao "capitalismo de conhecimento"-com aspas sim, porque a expressão é miserável e não deve ser confundida com valor do conhecimento real- que marca o século 21.

O novo autista é um comportamento filho da diversidade psíquica, não vítima de um drama ambiental familiar gravíssimo. O sofrimento dos familiares, claro, tende a abraçar o autismo hype como forma de investimento na autoestima do grupo.

Esse salto qualitativo anima o mercado da saúde mental de modo promissor. Num evento de profissionais de saúde mental recente no Brasil, uma psicanalista, seguindo a teoria de D.W. Winnicott (1896-1971), segundo a qual podemos entender o autismo como consequência do incômodo materno radical com a criança indesejada, fazendo do ambiente afetivamente hostil um espaço do qual a criança deve se isolar de modo radical -o conhecido isolamento autista-, quase foi apedrejada como uma herege maldita.

Qual o pecado dessa teoria? O pecado está no fato de ela apontar para o ambiente destrutivo -inclusive sendo a mãe parte essencial dessa destrutividade- como causa essencial do autismo. Isso é imperdoável para uma sociedade que elegeu o otimismo como virtude cívica.

O autismo deve ser cada vez mais uma personalidade positiva que oferece um bem fundamental para o mundo do trabalho: ser concentrado. O autista real, que você tem em casa, deve ser trocado pela advogada extraordinária.

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