Siga a folha

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Aos 70 anos e uns 120 filmes, Isabelle Huppert impõe sua imagem ao cinema

'Belas Promessas' entrega sombras e sobras do que atriz impôs ao cinema

Assinantes podem enviar 5 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Clémence é prefeita na periferia de Paris no filme "Belas Promessas", em cartaz no Belas Artes. Ela hesita entre reformar um conjunto habitacional em petição de miséria e abandonar a política ou enterrar o projeto e ser nomeada ministra.

A prefeita não é uma Artur Lira de tailleur, mas seu pragmatismo lembra o do barão das Alagoas. Em gabinetes, eles dizem "faço o que posso pelo povo e com mais poder farei ainda mais"; e acalantam na calada da cama a cláusula pétrea "se a farinha é pouca, meu pirão primeiro".

É com brandura que "Belas Promessas" mostra o toma lá dá cá da política. Como oculta se a prefeita é de esquerda, centro ou direita, insinua que todos os gatos são ratos, e não caçam a si mesmos. Com esse capacete de realpolitik, até Lira deliraria na motociata pró-status quo que é o filme.

"Belas Promessas" não aprofunda um centímetro no entendimento da política, não vale uma ida à esquina da Consolação com a Paulista. Exceto por Isabelle Huppert. E ainda mais agora.

A atriz fez 70 anos na última quinta-feira (16). Atuou nuns 120 filmes em mais de meio século. São números vagos, porque ela disfarça a idade e esteve em tantos filmes e peças que não se sabe quantos. Contracenou com Cate Blanchett na Broadway, em "As Criadas", de Genet —e você perdeu.

Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 17 de março de 2023 - Bruna Barroa

A sua prefeita Clémence põe a máscara da política profissa. Impede que se perceba o que pensa porque não pensa; age para ter poder. Matreira, estampa um sorriso calcinado, apunhala a afilhada pelas costas e emudece quando a sós com assessores fiéis.

Só ao perceber que perdeu a parada ela se permite externar uma emoção, que contudo é gélida: política é assim mesmo, dane-se. É com mímica minimalista que a atriz delata a prefeita.

Pode ser que não seja nada disso, todavia. Talvez o que o filme mostre mesmo seja uma atuação corriqueira. O que "Belas Promessas" promete e entrega são sombras e sobras do que Isabelle Huppert impôs ao cinema: agudeza, distanciamento, crítica.

Para Hitchcock, tal imposição é impossível: "Os atores se dividem entre os que têm talento e nunca receberam nenhum reconhecimento por isso e aqueles que receberam reconhecimento sem ter nenhum talento. De qualquer forma, são gado".

Isabelle Huppert nunca foi uma vaca que diretores pastassem a seu bel-prazer até que –muuuuuu– ela fosse para o brejo.

Mas foi hitchcockiana: "Não acho que atores sejam artistas. Usamos demais essa palavra. Sou uma intérprete: o universo de alguém é expresso por meu intermédio". A atriz seria um pincel? Ela matutou e saiu-se com essa: "Digamos que eu seja a tela". Eis a modéstia de uma antiprima-dona.

As declarações do rei do gado e da pintora flagram a eterna querela entre os que fazem filmes. Nos Estados Unidos, onde o controle dos conglomerados é férreo, filme bom é o que dá lucro. Na Europa, a latitude artística é um pouco maior, seja de diretores, seja de elencos.

No Brasil, onde nunca houve indústria cinematográfica, é diferente. A dramaturgia nasceu no circo, roçou o teatro, raspou o rádio e empacou na TV. O modernismo chegou à literatura em 1922 e só vingou nas telas com o Cinema Novo dos anos 1960. É chato porque Sônia Braga, superestrela de cinema, virou cometa: aparece num filme por década.

Isabelle Huppert criou uma mística própria porque tem talento e trabalhou com grandes diretores: Tavernier, Godard, Losey, os Taviani, Ferreri e, sobretudo, Chabrol. Beneficiou-se do que aprendeu com eles e inventou do nada um modo de interpretar.

Ela mudou ao longo dos anos –seu cinema é busca– até tornar-se a silhueta arisca e hierática de hoje, apesar de magrinha e com 1,60 metro. Quatro séculos separam a prostituta sardenta de "O Portal do Paraíso" (1982), de Cimino, da condessa doida de "EO" (2022) , de Skolimovski.

A pirueta de uma figura para a outra se deu em dois filmes de Chabrol dos anos 1990: "Madame Bovary", um exercício acadêmico prestigioso, e "Mulheres Diabólicas", comédia perversa na qual ela dirige o morticínio de uma família bem-posta na vida.

Fez fama fora da França com atuações escandalosas, com as cenas de estupro e sadomasoquismo de "A Professora de Piano", de Haneke, e de "Elle", de Verhoeven, ambos dos anos 2000.

Com a diferença de que o primeiro é um drama freudiano do qual o espectador sai do cinema com a boca cheia de superbonder e do segundo sai com a bela promessa de nunca mais ver nada de Verhoeven –mas na fissura pelo próximo filme de Isabelle Huppert.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas