Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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'Jeanne Dielman', filme mais vivo de todos, fala do tempo morto no dia a dia

Longa aparece pela primeira vez no topo da tabela de cem melhores obras da revista inglesa Sight and Sound

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Há 70 anos, a cada década, a revista inglesa Sight and Sound reúne críticos de vários países para eleger os cem melhores filmes de todos os tempos. As listas são um termômetro das oscilações no gosto de quem vai ao cinema. Das obras que ficam e modas que morrem.

Só três filmes chegaram ao pico da tabela desde 1952: "Cidadão Kane", de Orson Welles, cinco vezes; "Ladrões de Bicicleta", de Vittorio de Sica, e "Um Corpo que Cai", de Hitchcock, uma vez. Isso até a semana passada, quando 1.639 críticos sagraram "Jeanne Dielman" o filme máximo a história do cinema.

Cuma? Chantal Akerman, uma belga obscura, dirigiu em 1975 um filme mais vivo que os de Eisenstein, Visconti ou Kubrick? Cinema não é concurso de Miss Mundo, nem a Sight and Sound as tábuas de Moisés. Mas a escolha tem tudo a ver —"Jeanne Dielman" é excepcional.

Ilustração mostra, no centro da imagem uma mulher de cabelos ruivos bebe um copo de café com leite. À sua  frente estão a garrafa de leite e uma cafeteira
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti - Bruna Barros

Como a revista não dá qualquer orientação aos votantes, que variam de dez em dez anos, as mudanças na lista enfurecem os cinéfilos, ô raça turrona e buliçosa. Todavia, há coisas que não mudam: em sete décadas, nunca um filme nacional esteve entre os cem melhores do planeta.

Há dois modos de justificar essa ausência. Nosso cinema é indigente como a gente; ou os países ricos dominam as telas, os críticos e o rol dos grandes filmes. De todo modo, o mundo não liga para nosso cinema. Os brasileiros também não.

Logo, é melhor ir à Bélgica, à mulher e ao endereço do nome completo do filme: "Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080, Bruxelles". O título ecoa a duração do filme: três horas e meia.

Ali vive uma dona de casa, viúva, com o filho adolescente. É interpretada por Delphine Seyrig, a diva ebúrnea do cinema francês, a lua cheia de "O Ano Passado em Marienbad", de Alain Resnais (que, hélas, não entrou na lista; onde esses dromedários estão com a cabeça?).

Ao longo de três dias, Jeanne Dielman faz tudo sempre igual. Prepara o café da manhã. Despacha o filho para a escola. Lava a louça. Toma banho. Arruma a cama. Espana os móveis. Cozinha o jantar. Ouve rádio.

É enquadrada por uma câmara fixa, a meia distância, sem cortes. Age em tempo real —bem mais lento que o do cinema. O filme apalpa o tempo morto do dia a dia, os vazios que tecem a teia da vida.

Suas imagens, hipnóticas como as telas de Vermeer, chamam a atenção para detalhes, levam o espectador a buscar ligações entre eles. É o caso da lição de casa do filho de Jeanne, que tem de decorar e recitar "O Inimigo", poema de Baudelaire em que o tempo "rói o coração".

É quase mais um detalhe que Jeanne se prostitua. Estende uma toalha de banho sobre a colcha da cama. Recebe o cliente. A porta se fecha. O cliente sai. Paga. Diz "até a próxima". Vai embora. Tudo é mecânico. O sexo também? No dia seguinte surge outro freguês.

Algo estranho deve ter ocorrido no segundo encontro a portas fechadas. Jeanne começa a errar a mímica. Vai e de repente volta. Altera a ordem das coisas que faz. Esquece-se de ligar o rádio. O filho nota que está descabelada.

Algo explícito ocorre na terceira transa. A câmera entra no quarto e flagra uma sequência de cair o queixo —que não será contada para não estragar o gozo de quem tenha a ventura de ver "Jeanne Dielman". Ele termina com uma cena estática e extática.

O filme é feminino. Sugere que Jeanne encarna bilhões de outras mulheres. Como elas, exerce o claustrofóbico trabalho doméstico e cuida do filho, um traste que pouco fala e lê enquanto come. Para elas, o sexo é um ritual tão agradável quanto obturar cáries.

Como o feminismo está em alta, talvez por isso "Jeanne Dielman" tenha chegado de chofre ao cume dos grandes filmes. Que seja. Mas ele cala fundo porque fala com inteligência e empatia à gente toda.

Akerman passou a juventude em Nova York. Com 18 anos, foi modelo vivo de nus artísticos. Trabalhou na bilheteria de um cinema pornô, onde afanou fundos para financiar seu curta de estreia, a carta-bomba "Explode minha Cidade".

Assistiu aos filmes da vanguarda underground, sendo influenciada por Jonas Mekas e Michael Snow, além de Godard. Fez "Jeanne Dielman" com 25 anos, a idade de Orson Welles ao dirigir "Cidadão Kane".

Os avós de Chantal Akerman foram mortos em Auschwitz. Sua mãe, Natalia, também foi encarcerada. Nunca contou o que se passou com ela no campo nazi.

A mãe incentivou a filha a não se casar cedo, a ser artista. Eram ligadíssimas. Natalia morreu em 2014. Chantal se suicidou meses depois. Está viva em "Jeanne Dielman".

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