Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Filme da Índia no Oscar, 'RRR' desarruma o cinema colonial com extravagância

Perto dele, os grandiosos 'E o Vento Levou', 'Ben-Hur', 'Spartacus' e 'Avatar' são meros pigmeus no quesito exagero

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O cinema que se vê no Brasil é chinfrim. Além da Hollywood das superproduções, melodramas e comediazinhas pueris, o máximo que chega às telas é meia dúzia de filmes europeus –que imitam a estética norte-americana; ou então repetem o cinema de nicho dos festivais.

É pena, pois, que o épico indiano "RRR" não tenha passado aqui num Imax de encher olhos e ouvidos. Com três horas, é o filme mais visto dentro e fora da Índia desde sempre. É um fenômeno da globalização, só que com estética provinciana e ímpeto anticolonial.

Tanto que "RRR" significa "Revolta, Rebelião, Revolução". Quando estreou em Los Angeles, a plateia dançava nos corredores. No Japão, sua música viralizou –e agora disputa o Oscar de melhor canção.

Logo, é ótimo que "RRR" possa ser visto na Netflix. Não nas condições ideais, porque, sem exagero, o filme bate recordes históricos de exagero. Perto dele, "E o Vento Levou", "Ben-Hur", "Spartacus" e "Avatar" são pigmeus.

Dilúvios de flechas e lanças, cenas em câmera lenta ou aceleradas, abundância de extras e bichos, closes de poros e panorâmicas opulentas, lágrimas furtivas e borbotões de sangue: tudo é hiperbólico. Eis o trailer.

O filme se passa nos anos 1920, durante a revolta contra o jugo britânico. Conta as peripécias de Bheem e Raju, vagamente inspirados em figuras reais. Eles nunca se viram, mas convivem no filme, o que é o de menos.

O que é demais são os seus superpoderes. Bheem estraçalha um tigre maior que um ônibus e lhe pede perdão por aniquilá-lo com as mãos. Raju esmurra a malta amotinada que tenta invadir um quartel. Ambos têm superpoderes que o filme não explica.

Ilustração com fundo branco apresenta uma cena do filme RRR na qual os personagens dançam. Cinco mulheres estão ao fundo em tons pastéis e vestidos de época e à frente estão dois homens com calça preta e suspensório.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sérgio Conti de 25.fev.23 - Bruna Barros

Há que se aceitar o arrojo extra-humano e ir em frente. O que é fácil, porque os atores que os encarnam são arrobas compactas de músculos. Os efeitos especiais e a edição potencializam a força deles, fazem com que sejam ágeis como a águia, ligeiros como o guepardo.

Bheem é um herói pré ou apolítico. Engalfinha-se com os ingleses, boçais das mechas dos cabelos às unhas do pé, porque sequestram uma menina de sua aldeia. Vai a Delhi resgatá-la das garras da pérfida Albion.

Raju é um policial lambe-botas que trai e tortura sua gente para abiscoitar as migalhas que os colonizadores jogam aos lacaios. Infiltra-se entre os rebeldes para fazer picadinho de Bheem. O tema de "RRR" é a trama entre o traidor e o herói.

S. S. Rajamouli na premiação de 'RRR', em Los Angeles - Mario Anzuoni - 15.jan.23/Reuters

O acaso leva Bheem e Raju a serem amigos siameses. Cada qual, porém, ignora quem é o outro. Para complicar, o herói se apaixona por uma moçoila inglesa que não fala sua língua, e o traidor lhes serve de cupido e intérprete.

Tais cambalhotas são intercaladas por números de canto e dança que às vezes ofuscam Fred Astaire e Gene Kelly. Entre tantas outras esquisitices, "RRR" é um musical –de primeira e sem paródias.

De chofre, o musical embarca num flashback labiríntico. É um recurso tradicional, repetido a torto e a direito no "Mahabharata", o épico clássico da literatura hindu.

Quando o filme volta ao presente, os personagens mudaram e a trama segue trilhas insuspeitadas. Nada mais se dirá aqui do enredo para não estragar a surpresa de quem assistir ao filme, que abala o modo de representar ao qual nos acostumamos e adaptamos.

O que soa extravagante é só uma maneira de narrar diversa da nossa. Ela se enraíza num passado milenar e floresce num presente portentoso: pelo número de filmes que faz, e pelo público que alcança, o cinema indiano é maior que o de Hollywood.

Note-se o conselho de Krishna a Arjuna no "Mahabharata", à véspera da batalha: "Seja um guerreiro e mate o desejo, esse poderoso inimigo da alma" (Bhagavad Gita, 3: 43). Em "RRR", é o desejo –de justiça e autonomia– que impele os personagens à revolta, à política.

No final, o diretor S.S. Rajamouli faz uma homenagem grandiloquente a heróis da luta pela independência. Deixa Gandhi de fora e exalta os que, por vezes de armas na mão, se insurgiram contra os ingleses.

Foi atacado por isso; e por se inspirar em livros de Ayn Rand e filmes de Mel Gibson, dois reacionários. "RRR", dizem alguns indianos, é uma ode ao nacionalismo hindu –e islamofóbico– do primeiro-ministro Narendra Modi.

Rajamouli nega. Mas fez o roteiro de "RRR" com o pai, Vijayendra Prasad, um entusiasta do RSS, a organização paramilitar de plataforma chauvinista. Visto daqui, o filme de fato parece politicamente ambíguo. Isso não impede que desarrume o cinema colonial.

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