Siga a folha

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Descrição de chapéu China

Lembranças de Delfim

Papos sobre Henrique 4º, o velho da Havan, Lênin, os Cavalcanti e os cavalgados

Assinantes podem enviar 7 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Conheci Delfim Netto na tarde de 17 de fevereiro de 1978, uma sexta-feira de chuva copiosa. Deixara havia dias a embaixada em Paris e participava da inauguração da estação Sé do metrô —ele e dezenas de milhares de pessoas, atraídas por um show grátis de Aguinaldo Timóteo.

Apesar do aguaceiro, era o proverbial peixe fora d’água. Acaudilhara a economia, assinara o AI-5 e passara o pires junto ao empresariado para financiar centros de sevícia de dissidentes —e lá estava ele, todo desengonçado, dando tapinhas nas costas de candidatos a vereador.

Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti de 16 de agosto de 2024 - Folhapress

Fomos, os repórteres, perguntar-lhe que "catzo" fazia ali. Intuíamos um lero-lero, porque um assunto mais chato que unha encravada afligia os politiqueiros: a nomeação do próximo governador paulista. Ele não tinha a mais remota chance de abiscoitar o cargo, mas simulava estar na parada.

"São Paulo vale bem uma missa", respondeu. Com Paris no lugar de São Paulo, a frase fora dita por Henrique 4º para justificar a conversão ao catolicismo e se tornar rei da França. Perguntei se devia chamá-lo de delfim de França ou rei do Brasil. "Me chame de professor", disse, rindo.

Era assim, com uma pilhéria rococó, que ensaiava os primeiros —e canhestros— passos no minueto da política miúda. Acabou por impor seu estilo ao baile do baixo clero: voltou a ser ministro, foi deputado por 20 anos, aconselhou soberanos protestantes e papistas.

Não foi rei, mas, como se acreditou piamente na sua conversão de autocrata em democrata, morreu ao som de ladainhas à direita e à esquerda. Foi um destino mais aprazível que o de Henrique 4º, esfaqueado e morto por um católico fanático.

Antes, durante e após a conversão, sempre teve lado: o do desenvolvimentismo industrial, que para ele significava assalariar os cavalgados e assim propiciar lucros aos Cavalcanti; ordem e progresso.

Por isso apoiou Lula com arroubo crescente: "É um diamante bruto, um gênio".

Repetia esse mantra na aurora do primeiro mandato do petista. Estávamos num restaurante luxuoso e um Cavalcanti chegou à mesa, esteve a ponto de beijar-lhe a mão e pontificou que, com o presidente ferrabrás, o Brasil iria à bancarrota. "Lula está domesticado", tranquilizou-o Delfim.

O plutocrata se foi, Delfim contemplou os mármores, os lambris, os cálices de cristal do restaurante e disse: "Esse é o Museu Britânico deles, a abadia de Westminster deles". Era outra alusão sibilina, agora ao primeiro encontro de Lênin e Trótski, durante o exílio de ambos em Londres.

Lênin apontava os monumentos e prédios faustosos, mas acrescentava que eram "deles". Trótski percebeu que "eles" não eram os ingleses, e sim as classes dominantes. Lênin lhes reconhecia o poder e queria saber como eram —para expropriá-las e mudar o mundo de fio a pavio.

Em setembro de 2017, num almoço numa cantina, Delfim deu a prisão de Lula como inevitável. Especulou o que poderia acontecer: "O sujeito está sem emprego, a escola dos filhos é uma droga, a mulher trabalha a mais não poder; e ele vê a dinheirama do Geddel, a mala para o Temer na pizzaria, a súplica do Aécio à JBS. Esse cara quer vingança."

Acrescentou: "Uma explosão popular está fermentando, talvez até uma revolução, mas ela pode ser evitada se houver um desenlace positivo". Tal desfecho tinha nome, sobrenome e cargo: Fernando Haddad presidente. Ele "construiria pontes entre o povo e o empresariado". Vaticinou: "Se der Bolsonaro, vai dar merda". Merda deu, e o que explodiu foi o seu desprezo.

Desprezo pelo presidente: "É uma cavalgadura". Por Paulo Skaf: "Aquele pato na Fiesp foi um erro histórico". Pela Lava Jato: "Posaram de Os Intocáveis e são uns malandros". Pelo Supremo: "Gilmar Mendes é louco e Barroso, barroco". Desprezo por Luciano Hang, o velho da Havan: "Antonio Ermírio foi trocado por um tipinho que se veste de maritaca".

Em agosto de 2018, Delfim falou de novo em revolução. Foi na cremação de Otavio Frias Filho, o diretor de Redação do jornal onde escrevia uma coluna elegantérrima e informadíssima, a Folha. "Otavio era um revolucionário", balbuciou, pesaroso. Era a segunda vez que o via comovido.

Dias depois, falei a ele que Otavio dizia "reforma" da Folha, não "revolução". Ele comentou: "Pois é, a modéstia é outra virtude dos revolucionários. O Otavio foi radical, transformou uma tumba num jornal vibrante, à altura dos melhores do mundo, mas com um jeito brasileiro".

Delfim se emocionara pela primeira vez em meados dos anos 1990, numa mesa do saudoso Massimo. Era casado com Mercedes Saporski e tivera uma filha fora do casamento com Gervásia Diório. O assunto era tabu, apesar de fofocado à farta nos corredores do poder. Como não falava nunca da família, ficava parecendo que não reconhecia a filha, Fabiana.

(Como também não se dedicava aos esportes prediletos dos brasileiros, falar de mulheres e futebol, corria a mil durante a ditadura o murmúrio de que era gay.)

Disse-lhe no Massimo que queria publicar uma nota em Veja, na seção Gente, com Fabiana. Argumentei que seria bom para ela, que apareceria publicamente como sua filha; para ele, que furaria o balão das maledicências; e para a revista, que daria uma notícia exclusiva com sobriedade.

Delfim cobriu os olhos com as mãos e ficou em silêncio um tempão. Por fim, abriu-os —estavam rasos d’água. "Isso seria bom, mas não", disse. "Como na política só tem filhos da puta, usariam a nota para magoar a Fabiana." Mercedes morreu em 2011 e Delfim se casou com Gervásia.

No mesmo ano, inaugurou-se a biblioteca que doou à sua alma mater, a Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo. Com 250 mil livros, e outro tanto de revistas, artigos e teses, valia milhões. Feliz da vida, entrou no salão de mãos dadas com o neto, Rafael.

"Estou agachado no banheiro para me defender do vírus", disse-me ao telefone no começo da pandemia. Achou que o confinamento seria breve e retomaríamos nossos almoços para, como escreveu num email, "comer bem e falar mal dos outros". Mas o isolamento se perpetuou e foi viver no seu sítio.

Mandou uma última mensagem há um ano. Eu entrevistara na GloboNews Isabella Weber, a pesquisadora alemã que viveu em Pequim e escreveu o livro "Como a China Escapou da Terapia de Choque".

Ela contou no livro que uma comissão do Partido Comunista Chinês estivera em Brasília nos anos 1970 e entrevistara Delfim. Os chineses queriam saber como fizera para que a economia crescesse tão rápido. O relatório da comissão foi debatido na cúpula do PC.

Isabella Weber autografou um exemplar e pediu que o encaminhasse a Delfim. Fiz isso por meio de dona Nea, sua secretária. Aproveitei e mandei-lhe um bilhete sugerindo um bate-papo.

Ele mandou um email de volta. O texto tinha todo o jeito de ter sido ditado. Agradeceu o livro, mas disse que, lamentavelmente, não dava mais para conversar. Morreu na segunda-feira, aos 96 anos.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas