Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli
Descrição de chapéu STF

Um Moro no Supremo

Moraes fornece ao bolsonarismo narrativa perfeita ao converter TSE em tentáculo de inquérito

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É a mesma novela, em outra versão. Sergio Moro, o redentor, fundou um partido de juízes e procuradores, violou as tábuas da lei e, no fim, desmoralizou a maior investigação sobre a corrupção política no país. Alexandre de Moraes, o vingador, nomeou-se investigador, promotor e juiz, converteu o TSE em tentáculo de seu inquérito sem fim e, ao final, desmoraliza o processo sobre a conspiração golpista, fornecendo ao bolsonarismo uma narrativa perfeita.

Tudo "oficial", "regular", "regimental", proclama Moraes, como alegava Moro –e, como seu inspirador, colhe aplausos corporativos e partidários. Moro apontava aos procuradores os indícios que deveriam procurar, a fim de produzir as provas judiciais de um processo com resultados predeterminados. Moraes ordenava ao TSE a fabricação de relatórios sob medida contra alvos selecionados, transformando-os em provas destinadas a embasar suas próprias decisões. Nos dois casos, o ritual político esculpiu o rito legal.

A imagem mostra a parte de trás de Alexandre de Moraes, um homem careca, vestido com um terno escuro. Ele está voltado para um fundo preto, que cria um contraste forte. A iluminação é suave, destacando a silhueta do homem.
O ministro Alexandre de Moraes em sessão no plenário do Senado, em Brasília - Gabriela Biló - 17.abr.24/Folhapress

"Obediência devida" –os juízes auxiliares não se envergonham de recorrer ao álibi dos militares argentinos. Eu "cumpria todas as ordens que me eram dadas" e, travessuras da memória!, "não me recordo de ter cometido qualquer ilegalidade", declarou um deles. Protegido por garantias, estofado de privilégios, o alto funcionário público tem o notório hábito de subordinar o dever às ordens superiores.

A surpresa é privilégio dos distraídos. Tudo começou, em 2019, com um "inquérito de ofício" pelo qual o juiz supremo censurou textos legítimos de uma revista, prosseguiu com a abertura em leque do inquérito de exceção e desaguou numa coleção de atos de censura prévia contra militantes de redes sociais. No meio do caminho, como holofote a iluminar uma impostura, um episódio de malcriação no aeroporto de Roma foi alçado ao estatuto de ameaça à democracia brasileira. (Dica: aquelas gravações jamais virão a público porque familiares do juiz também não ficam bem na fita).

A lei, ora a lei: se é para combater "fascistas", vale tudo. O argumento, simétrico ao empregado pelos bolsonaristas na hora da nudez de Moro, remete ao antigo tema dos meios e fins. Fins nobres justificam meios ignóbeis? Depende, claro, de quem define o que é nobre. A ditadura militar prendeu e torturou para salvar-nos do "comunismo". Maduro frauda e reprime para derrotar o "fascismo". O ato inaugural das tiranias é, invariavelmente, a demolição da muralha que separa a lei da política.

Os meios qualificam os fins, esclareceu um Trotski acuado pela espada do stalinismo. No Estado de Direito, o processo legal está ancorado precisamente no princípio filosófico exposto pelo revolucionário russo. Dele decorreu a anulação das condenações de Lula na Lava Jato –e é ele que, agora, pesa sobre o conjunto das decisões de Moraes no âmbito de seus abrangentes inquéritos.

Moro salva-nos da praga da corrupção! Moraes resgata a pátria do abismo golpista! Golpismo, como corrupção, é perigo real, não lenda. Contudo, a lei tem todos os meios para combatê-lo eficazmente. De fato, num caso e no outro, a subversão da lei engendra a impunidade para os culpados e, ao longo do percurso, a punição injusta de inocentes.

Quem fiscaliza o juiz-político? Jogando para a plateia, o STF ("in Fux we trust") confirmou cada uma das decisões de Moro – até que a ventania política mudou de lado. Moraes, ao contrário de Moro, não é um juiz de aldeia, mas um ministro de capa preta. Quanto tempo precisará o STF para inverter sua rota, restaurando algum simulacro de obediência ao processo legal?

Até o momento, o "inquérito de ofício" resultou em diversas ordens ilegais de censura e na condenação de dezenas dos vândalos periféricos do 8/1, mas nem tocou no chefão da conspiração, que circula por aí como grão-cabo eleitoral. O tempo costuma impugnar as encenações farsescas.

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