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Antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

A gente somos inútil!

Novas gerações não compreenderão por que não impedimos a destruição do país

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Em 2007 estive na Alemanha para dar oito palestras nas universidades de Berlim, Munique, Colônia e Bremen. Passei alguns meses no país e entrevistei dezenas de mulheres e homens para a minha pesquisa sobre envelhecimento e felicidade.

A experiência mais emocionante que tive foi participar de um seminário sobre pesquisa qualitativa na Universidade Livre de Berlim. Eu era a única estrangeira no evento e, o que foi mais impactante, a única judia.

Durante horas escutei as apresentações de jovens alemães sem conseguir compreender por que eles sentiam tanta dor, vergonha e culpa pelo passado nazista. Por que carregavam um peso tão grande por uma tragédia que aconteceu bem antes de nascerem?

“Meus avós não eram nazistas nem antissemitas, mas fizeram vista grossa, ficaram calados para se proteger da violência e da morte.”

“Eles achavam que Hitler era autêntico, porque usava uma linguagem popular e prometeu resolver a crise econômica.”

“Não consigo entender como meus antepassados continuaram vivendo normalmente apesar de saberem que seus vizinhos e amigos foram assassinados em campos de concentração.”

“Eles não levaram a sério o que Hitler falava sobre acabar com os judeus, comunistas e gays. Achavam que ele era um palhaço, um bufão, um fanfarrão.”

“Meus avós e bisavós votaram no Partido Nazista, como mais de 13 milhões de alemães. Foram cúmplices do extermínio de 6 milhões de judeus e de mais de 50 milhões de pessoas que morreram na Segunda Guerra Mundial. É uma ferida que nunca vai cicatrizar.”

Naquele momento, não compreendi o sofrimento, vergonha e culpa dos jovens alemães. Não consegui imaginar um brasileiro sentindo tanta dor por algo que aconteceu no passado. Hoje compreendo perfeitamente. Acredito que, em um futuro próximo, os jovens irão questionar as escolhas e atitudes dos seus pais e avós durante a pandemia.

Abertura de valas no cemitério da Vila Formosa, na zona leste de São Paulo - Eduardo Anizelli/Folhapress

Por que mais de 57 milhões de brasileiros votaram em um psicopata que defendia a tortura e a ditadura? Por que 31 milhões de brasileiros se abstiveram de votar, 7 milhões anularam seus votos e 2 milhões votaram em branco? Por que tantos continuaram apoiando e se identificando com um genocida após milhões de mortes e de doenças físicas e mentais que destruíram vidas, famílias, amizades, empregos, projetos e sonhos?

Muitos brasileiros terão que se justificar. Afinal, não votamos em um fascista; fizemos a campanha “Ele, não”; combatemos o genocídio nas redes sociais; assinamos manifestos pedindo o impeachment; batemos panelas gritando: “Basta! Fora, genocida!”; rompemos com amigos e familiares negacionistas; xingamos de psicopatas, monstros, desumanos, sádicos, perversos, torturadores, fascistas, criminosos, covardes, fanáticos, facínoras, vermes, demônios etc.

Teremos que confessar que, apesar de termos feito tudo o que fizemos, fomos inúteis, impotentes, incapazes, fracassados, fracos, covardes e culpados, pois não conseguimos impedir o genocídio e a destruição do país.

Em uma coluna recente, critiquei o abuso do “a gente” nos noticiários da TV. Nela, lembrei de uma música de sucesso dos anos 1980: “A gente não sabemos escolher presidente/ A gente não sabemos tomar conta da gente/ A gente não sabemos nem escovar os dente/ Tem gringo pensando que nós é indigente/ Inútil/

A gente somos inútil!”.

Será que “a gente podemos” acrescentar uma nova estrofe à letra?

“A gente não sabemos escolher presidente/ A gente somos impotente e não salvamos as vida da nossa gente/ A gente não sabemos nem lavar as mão e usar as máscara/ Tem gringo pensando que nós é ameaça ao planeta/ Inútil/

A gente somos inútil!”

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