Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
Desarmando um vexame
Relatório do Exército sobre a intentona de janeiro é ensaio prático de cegueira
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"La putenza caca n'muca alla giustizia". A tradução literal deste provérbio sardo talvez seja por demais chula, mas o dialeto torna ao menos pitoresco o significado: o poder faz algo execrável na boca da Justiça. É o que se depreende do vexaminoso inquérito do Exército sobre os atos golpistas de janeiro. Internamente, angélica paz. Fora, no acampamento protegido, havia furtos, denúncia de estupro e porte ilegal de armas, mas militarmente "não foram identificados aspectos que pudessem comprometer a segurança orgânica dos aquartelamentos". Logo, nenhuma responsabilidade pelo exterior dos quartéis.
Sempre foram tênues os limites entre sentimento e realidade. A imprecisão é mais acentuada no plano individual, mas se manifesta em nível coletivo, sobretudo em instituições com forte autopreservação corporativa. Um estado real de coisas, ou seja, um fato, pode estar à frente, mas o sentimento ilhado recusa-se a aceitá-lo. Assim, um grupo em cima do muro protege-se de sua própria indecisão com o desconhecimento como álibi para irresponsabilidade moral. Isso ocorre às vezes como mecanismo de defesa, já que o perigo de incorrer em algum malefício parece ser menor quando dele se está inconsciente.
Mas quando esse grupo é instituição de Estado, democraticamente sustentada pelo povo, inconsciência não se caracteriza como desculpa, e sim como delito. O acampamento dos descontentes com democracia tem precedente histórico na "Strafexpedition" (expedição punitiva), popular no começo do nazismo: maltas flutuantes que não sabiam se a solução para seus problemas pessoais estaria na política ou no crime. Entre nós, eram incubadoras de caos golpista, evidente a quaisquer observadores.
Um Exército a que se possa apor o adjetivo "nacional" não é mero corpo técnico de segurança. É instituição no rigor sociológico do termo, ou seja, transmissão de saberes, além de práticas de preservação territorial e demográfica do país. Armamento, claro, mas principalmente uma formação compatível com a totalidade nacional e não com o imaginário de casa-grande das classes dirigentes. E nada de soberana força moderadora: soberano é o povo transcrito na Constituição.
Num país onde guerra é peça retórica há quase dois séculos, jamais caberia às Forças Armadas fomentarem algo como "valentia inquebrantável dos cidadãos" (programa de Goebbels na Alemanha nazista), mas a coragem ética de ver o real dentro e fora de si mesmas. Logo, outro tipo de formação humana, centrada em pesquisa tecnológica e avessa a rescaldos ditatoriais ou ensaios práticos de cegueira como o relatório da intentona de janeiro, que faz com a Justiça o execrável do provérbio sardo. Vexame verde-amarelo. Valeria escutar a ética: "O que não se pode falar, deve-se calar" (Ludwig Wittgenstein).
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