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Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

Desarmando um vexame

Relatório do Exército sobre a intentona de janeiro é ensaio prático de cegueira

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"La putenza caca n'muca alla giustizia". A tradução literal deste provérbio sardo talvez seja por demais chula, mas o dialeto torna ao menos pitoresco o significado: o poder faz algo execrável na boca da Justiça. É o que se depreende do vexaminoso inquérito do Exército sobre os atos golpistas de janeiro. Internamente, angélica paz. Fora, no acampamento protegido, havia furtos, denúncia de estupro e porte ilegal de armas, mas militarmente "não foram identificados aspectos que pudessem comprometer a segurança orgânica dos aquartelamentos". Logo, nenhuma responsabilidade pelo exterior dos quartéis.

Manifestantes golpistas expulsam agentes do Governo do Distrito Federal que iriam desmontar acampamento em frente ao QG do Exército em Brasília - Gabriela Biló - 29.dez.22/Folhapress

Sempre foram tênues os limites entre sentimento e realidade. A imprecisão é mais acentuada no plano individual, mas se manifesta em nível coletivo, sobretudo em instituições com forte autopreservação corporativa. Um estado real de coisas, ou seja, um fato, pode estar à frente, mas o sentimento ilhado recusa-se a aceitá-lo. Assim, um grupo em cima do muro protege-se de sua própria indecisão com o desconhecimento como álibi para irresponsabilidade moral. Isso ocorre às vezes como mecanismo de defesa, já que o perigo de incorrer em algum malefício parece ser menor quando dele se está inconsciente.

Mas quando esse grupo é instituição de Estado, democraticamente sustentada pelo povo, inconsciência não se caracteriza como desculpa, e sim como delito. O acampamento dos descontentes com democracia tem precedente histórico na "Strafexpedition" (expedição punitiva), popular no começo do nazismo: maltas flutuantes que não sabiam se a solução para seus problemas pessoais estaria na política ou no crime. Entre nós, eram incubadoras de caos golpista, evidente a quaisquer observadores.

Um Exército a que se possa apor o adjetivo "nacional" não é mero corpo técnico de segurança. É instituição no rigor sociológico do termo, ou seja, transmissão de saberes, além de práticas de preservação territorial e demográfica do país. Armamento, claro, mas principalmente uma formação compatível com a totalidade nacional e não com o imaginário de casa-grande das classes dirigentes. E nada de soberana força moderadora: soberano é o povo transcrito na Constituição.

Num país onde guerra é peça retórica há quase dois séculos, jamais caberia às Forças Armadas fomentarem algo como "valentia inquebrantável dos cidadãos" (programa de Goebbels na Alemanha nazista), mas a coragem ética de ver o real dentro e fora de si mesmas. Logo, outro tipo de formação humana, centrada em pesquisa tecnológica e avessa a rescaldos ditatoriais ou ensaios práticos de cegueira como o relatório da intentona de janeiro, que faz com a Justiça o execrável do provérbio sardo. Vexame verde-amarelo. Valeria escutar a ética: "O que não se pode falar, deve-se calar" (Ludwig Wittgenstein).

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