Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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O crime pede respeito

Invasora detida em Brasília queixou-se: "Estão nos tratando como presos"

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São numerosos os dados sobre pessoas com antecedentes criminais nos atos terroristas. Só o acampamento em Brasília registrou 73 delitos (lesões corporais, furtos) em dois meses. Não será por acaso que, em atentados ultradireitistas nos EUA, se registrem indivíduos com gravames penais. Entre trumpistas e seus êmulos brasileiros medeia um oceano de coincidências significativas tecidas pela relação íntima entre política e crime, traço essencial do fascismo.

Pessoas gritam e exibem bandeiras do Brasil das janelas de um ônibus; uma pessoa mostra um pedaço de papel em que está escrito "SOS Forças Armadas"
Bolsonaristas detidos no acampamento golpista em frente ao QG do Exército em Brasília na manhã seguinte aos ataques às sedes dos Três Poderes gritam, pedem socorro às Forças Armadas e mostram bandeiras na chegada à superintendência da Polícia Federal - Pedro Ladeira - 9.jan.23/Folhapress

Foi George Orwell quem primeiro enxergou na linguagem política a secreta destinação de fazer com que "o crime se torne respeitável". Como a delituosa escamoteação da verdade sempre foi intrínseca à luta pelo controle do Estado, a afirmação visa prioritariamente efeitos colaterais do exercício do poder. A atualidade do escritor comprova-se na vida brasileira, onde se faz politicamente pertinente a sua tese de que "numa época de mentiras universais, dizer a verdade é revolucionário".

Na linha de Orwell, a lógica do crime é maior que a da lei. De fato, na vida prática, mais importa a conduta, que pode ser existencialmente lesiva em aspectos não legalmente codificados. A lei, por sua vez, visa geralmente a garantir elites contra as classes desfavorecidas. Mas não pertence à pobreza a raiz do fenômeno criminoso (aliás, os pobres salvaram eleitoralmente o país), e sim à miséria humana, à aliança interna com a escuridão. Em sua amplitude, o crime configura todo dano ético à sociedade. Por exemplo, a tortura, assim como sua apologia pública.

É clara, assim, a natureza terrorista do vandalismo, da sabotagem elétrica e do caminhão-bomba, apesar da duvidosa tipificação legal. Inconteste é o crime tramado de lesa-instituição de paisanos e fardados: as falanges do Inominável e seus generais. Toda ideologia aspira à publicidade, mas é como se o crime fosse uma ideologia das sombras. E, na falta de bingos ou outros fetiches, a mancomunação delituosa pode confortar idosos, carentes de objetivos vitais e instrumentalizados pela perversão do gozo.

Talvez demore para se aquilatar toda a gravidade da delinquência antidemocrática, à qual não escapam autoridades, religiosos, médicos e o próprio Legislativo. Por enquanto, para um reequilíbrio realista, vale ponderar sobre miúdos episódios sintomáticos. Num deles, uma invasora detida em Brasília queixava-se: "Estão nos tratando como presos". Ou seja, a coautora de um dos atentados mais infames contra a República brasileira ignorava a sua condição criminosa. Por alienação de classe ou por negação digital da realidade, o delírio privilegiado obscurecia a enormidade da violência. É que "cidadãos de bens" (e não "do bem") são embalados pela cantilena fascista do crime respeitável.

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