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Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

Filhos da tecnologia levam pais e cientistas para o divã

Clínica Psicanalítica de Reprodução Assistida trata de angústias diante de doação de óvulos, barriga de aluguel e clonagem

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Doador de esperma é pai biológico da criança? Uma mulher se submete a tratamento de fertilização in vitro e quando engravida decide abortar. Quais os cuidados para com a mulher que empresta seu útero para gerar o filho de um casal homossexual como barriga de aluguel?

Os dilemas éticos e existenciais acima são algumas das questões ainda sem respostas diante de biotecnologias que revolucionam o modo como nascemos, vivemos e morremos.

Para levar luz às zonas cinzentas deste maravilhoso e surpreendente mundo novo foi recém-inaugurada a Clínica Psicanalítica de Reprodução Assistida, dentro do Instituto da Psicanálise Lacaniana (Ipla).

O curso reuniu o psicanalista Jorge Forbes e a geneticista Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e outros especialistas.

Entre os temas abordados na aula/divã estão o debate ético e as escolhas subjetivas daqueles que desejam hoje ter um filho e se veem frente a frente com a angustiante evidência de que não nascemos mais como antigamente. 

Futuros pais contam com leque de tecnologias que vão da barriga de aluguel à clonagem, a criopreservação de gametas e ao mapeamento do genoma.

Temas da pós-modernidade que nos transportam para o que Forbes chama de TerraDois, esse novo planeta disruptivo em que vivemos e mal conhecemos.

“Não nos cabe a cruzada anticientífica. A incompletude humana não necessita de defensores, ela se impõe por si só e cabe aos analistas saberem estar no seu tempo, recolhendo os efeitos das novas sombras criadas pela forte luz dos avanços científicos”, afirma Jorge Forbes, autor de “A ciência Pede Análise (2012).

BASTARDOS DA TECNOLOGIA

O título da obra de Forbes deu nome ao primeiro painel do encontro, que reuniu cerca de 80 pessoas na sede do Ipla, em São Paulo. Coube a Clóvis Pinto de Castro, doutor em ciências da religião, destacar as angústias dos “filhos bastardos da tecnologia, entregues à própria sorte”.

É o que diz também François Ansermet, psiquiatra infantil e docente da Universidade de Lausanne, em seu livro “La Fabrication des Enfants – Un vertige Technologique”, que serviu de base para as discussões que atraiu médicos, filósofos e advogados.  

​“Hoje , a ciência opera sobre o mundo de modo mais rápido do que ela pode pensá-lo, conhecê-lo. Começa por operar antes de se interrogar sobre as consequências do que faz”, escreve Ansermet.  

Esse agir irrefletido que leva à vertigem causada pela imprevisibilidade e irreversibilidade de técnicas já tão difundidas em tempos que convidam psicanalistas a atuaram como “clínicos da perplexidade”.

As biotecnologias perinatais, aponta Ansermet, estão provocando traumatismos anteriores ao nascimento ou até mesmo à concepção.

“Elas abalam o manejo da diferença dos sexos e das gerações mediante as procriações medicamente assistidas, as possibilidades de crioconservação dos zigotos, da conservação dos óvulos segundo a conveniência, da gestação para um outro, do diagnóstico pré-implantatório ou da seleção de parceiros em função de sequenciamento do genoma em uma perspectiva preditiva.”

 Na segunda aula inaugural, Manuela Ferreira, mestre em Filosofia pela USP e do corpo de formação em psicanálise do Ipla, partiu do princípio de que “hoje, o oráculo é genético”, quando o avanço tecnológico aplicado à reprodução humana separou conceitos como origem, sexualidade, procriação, gestação, nascimento e filiação.

“Podemos congelar o tempo, suspendê-lo, espaçar o tempo entre a reprodução e a gestação”, elencou, sobre a disjunção entre sexualidade e reprodução. 

Como fica a foto de família e o lugar de pais e mães biológicos, quando terceiros recorrem a bancos de esperma e a barrigas de aluguel para gerar filhos? “O pai é o pai do laço, da relação, do nome transmitido, das identificações, da história que se constrói dia após dia”, responde a filosofa.

“Por que então reduzir tudo ao curto momento da concepção? Por que então conceder ao doador um lugar maior com relação à criança do que aquele que está lá, todos os dias com a criança?

Ansermet também pontua, diz ela, que “uma criança é, com efeito, muito mais do que o resultado do seu código genético”.

E Zatz concorda. A renomada geneticista brasileira cita o caso de crianças adotadas que ganham característica dos pais, como expressões faciais daqueles com quem convive. “É a prova de que os afetos legitimam os laços e não a genética.”

Forbes vai além e completa: “Todos somos adotados, inclusive os filhos biológicos.”

AO GOSTO DO FREGUÊS

Os psicanalistas apontam ainda para os intricados caminhos oferecidos por uma medicina tipo “alfaiataria”, ao gosto do freguês.

Manuela Ferreira apresenta um dado: bancos de análises genéticas e biomarcadores, como o Biobanco, do Reino Unido, disponibilizam gratuitamente em 2017 cerca de 1,7 milhões de variantes genéticas.

“Com o gene não há diálogo, com o sujeito, sim”, provocou a psicanalista Liège Lise, na terceira aula do curso, destacando que o diálogo entre psicanálise e genética é vital diante do silêncio do “tudo saber” que impera no mundo científico. 

Ao seu lado, a também psicanalista Teresa Genesini fez a apresentação de um estudo de um dos casos atendidos na clínica que o Ipla disponibiliza em parceria com o Centro de Pesquisa sobre Genoma Humano da USP.

Discorreu sobre a forma como um casal de cadeirantes que vem tentando ter um filho com a ajuda da reprodução assistida lida com a infertilidade. “O desejo daquele casal se perde no labirinto das possibilidades dadas pela ciência”, conclui a psicanalista.

Um caso concreto para lembrar que a psicanálise atua no singular, no caso a caso. Enquanto a ciência deve ser regulada por leis e pede uma ética universal, coletiva. 

"Do nascimento à morte, vivemos o maior tsunami que já se abateu sobre o laço social humano", conclui Forbes. "Necessitamos de uma clínica psicanalítica que mostre, elucide, convide à fantástica experiência de estabelecer novas formas de viver e se relacionar, tanto no nível do indivíduo, como das instituições.” 

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