Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.
Foi com a escritora Adília Lopes que eu deixei de bancar o espertinho
O seu lixo gerava vida e poemas, ao passo que o meu lixo não gera nada
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Certo dia fui incumbido de entrevistar uma escritora chamada Adília Lopes. A primeira pergunta que lhe fiz foi sobre um poema seu de que eu gostava muito. Chama-se "Autobiografia Sumária" e só tem três versos: "Os meus gatos/ gostam de brincar/ com as minhas baratas".
O meu objetivo era impressionar a autora com a minha excelente interpretação do poema. Disse-lhe que aqueles versos eram também o resumo da minha vida. Os meus gatos, isto é, aquilo que em mim é felino, arguto, crítico, aquilo que em mim é perspicaz —e até cruel— gosta de brincar com as minhas baratas, ou seja, com aquilo que em mim é repugnante, reles, rasteiro, vil.
E aquela operação poética —que é, igualmente, uma operação humorística— de escarnecer de si próprio era-me tão familiar que podia descrever-me de forma tão competente como à autora do poema.
Os olhos de Adília Lopes umedeceram-se. Fosse qual fosse a noite solitária em que escreveu o poema, estava longe de imaginar que, tanto tempo depois, a sua alma gêmea se apresentasse à sua frente, compreendendo-a tão profundamente.
Foi então que Adília Lopes falou. Disse o seguinte: "Sim. Bem, comigo, o que se passa é que eu tenho gatos. E tenho também baratas, na cozinha. E os gatos gostam de ir lá brincar com elas". E depois exemplificou, com as mãos, o gesto que os gatos faziam com as patinhas.
Foi naquele dia, amigo leitor, que eu deixei de bancar o espertinho. A vida de Adília Lopes, mesmo podendo ser resumida a uma circunstância banal envolvendo baratas, era muito mais interessante que a minha.
O seu lixo gerava vida e poemas, ao passo que o meu lixo não gera nada. Mas esta semana recebi um email que me alertava para o fato de o meu cartão bancário estar sendo utilizado por outra pessoa.
O email apontava algumas despesas que, de fato, não tinham sido feitas por mim e, por isso, estando eu a ser vítima de fraude, devia clicar num link para resolver o problema.
Sucede que o link era fraudulento. Ou seja, o email tinha sido enviado por alguém que me avisava de ser vítima de fraude para que eu fosse vítima de fraude.
O autor do email chamava a minha atenção para uma fraude falsa para que eu caísse numa verdadeira. É uma curiosa variação do paradoxo do mentiroso.
Ele está a mentir mas a dizer a verdade. Que é, na verdade, mentira. E por isso, com orgulho, eu coloquei esse interessantíssimo email no lixo.
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