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Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

Flamengo-sebastianismo

Num ano de humilhações internacionais, o milagroso resgate da altivez

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O futebol jogado pelo Flamengo em 2019 —na verdade, no segundo semestre só— foi uma das poucas grandes belezas produzidas por um conjunto de brasileiros este ano. 

Pode-se pensar em outras belezas coletivas, como o disco do Emicida, “AmarElo”, ou o “Macunaíma” de Bia Lessa, mas elas não serão muitas. 2019 foi dureza.

Sim, sou rubro-negro. Acho que não há traço de clubismo na apreciação estética que estou fazendo, mas é claro que a alegria que isso me proporcionou num ano tão difícil é inseparável de tal condição.

Acredito ser, mais que Flamengo, meio sebastianista. Foi por ser assim que escrevi um romance chamado “O Drible”. Como se sabe, sebastianismo é a crença mística na volta de d. Sebastião, o jovem rei de Portugal que morreu na batalha de Alcácer-Quibir em 1578. 

Seu reacionarismo messiânico é persistente na cultura popular luso-brasileira, mas a palavra se expandiu.

Hoje se pode chamar de sebastianista qualquer maluco que sonhe com a restauração de uma glória extinta.
Nunca fui de grande paixão clubística, mas quando tinha oito anos vi jogar a seleção de 70. Jamais me recuperei desse fato. 

Éramos reis. Sobre aquele time o inglês Nick Hornby, autor de “Febre de Bola”, disse que era como o carro de James Bond, cheio de armas secretas, enquanto as outras equipes não passavam de automóveis convencionais.

Não pense o leitor apressado que ensaio uma comparação entre o time de Zagallo e o de Jorge Jesus. Não sou doido. Falo daquele time porque ele fez de mim um eterno insatisfeito, alguém que vive buscando nas equipes que gosta de ver jogar um vestígio da grandeza perdida.

Utopia? Não costumava ser. Por décadas o Brasil foi capaz de produzir times assim: o Santos de Pelé, o Botafogo de Garrincha, o Flamengo de Zico, a seleção e o São Paulo de Telê, o Palmeiras de Rivaldo, o Vasco de Edmundo. Entre outros.

Terminado o século 20, acabou a festa. A economia passou a gritar alto demais, reservando ao ex-“país do futebol” o papel subalterno de fornecedor de mão de obra.

Diante dos europeus, passamos a jogar como times pequenos, fechadinhos, valentes mas humildes, sabendo ter na bola vadia a única chance.

A subalternidade econômica e cultural do Brasil no campeonato das nações tinha enfim chegado ao coração, à morada de nossa última chispa de altivez.

Os europeus passaram a jogar o que parecia outro esporte, tamanho o desnível técnico e tático. Por aqui nos habituamos a pensar nesse abismo como intransponível.

Em Doha, o Flamengo caiu no buraco tentando cruzá-lo, mas mostrou que de intransponível o abismo não tem nada. 
O campeão europeu mereceu a vitória, mas se viu forçado, a princípio com evidente perplexidade, a batalhar por ela contra um adversário que tocava a bola com uma qualidade e uma altivez ausentes desde... desde... Alcácer-Quibir?

Num ano em que o Brasil sofreu humilhações internacionais em série e viu a subserviência aos EUA ser oficializada como política de Estado, trata-se de uma forra simbólica quase milagrosa.

Infelizmente, “o futebol pode espelhar a vida, mas a recíproca, por razões que ignoramos, não é verdadeira.

Há entre os dois uma assimetria, um descompasso no qual não me surpreenderia que coubesse toda a tragédia da existência”.

Com a frase do cronista esportivo Murilo Filho, torcedor do América do Rio, a nos restituir algum imprescindível realismo, me despeço desejando aos leitores um feliz 2020. Até 30 de janeiro.

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