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Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

O rato, o gatuno e o ladrão de joias

Associação do roedor com o amigo do alheio tem pelo menos quatro séculos

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Faz pelo menos quatro séculos que a palavra rato está associada ao ladrão. O filólogo catalão Joan Corominas, referência na matéria, registra para o espanhol "ratero", em 1605, a acepção de "ladrão que furta coisas de pouco valor".

Quer dizer que o rato só rouba o que é barato? No Houaiss, a terceira acepção da palavra, a primeira figurada, é "pessoa que pratica furtos em locais públicos, tais como igrejas, feiras etc.".

Se a miudeza do ganho parece ancestralmente associada ao rato, como então chamar quem afana fortunas –joias, por exemplo, como as que o ex-presidente Jair Bolsonaro recebeu dos sauditas no papel de chefe de Estado e levou para casa? Haverá uma palavra do reino animal para esse tipo de ganho?

Relógio Chopard L.U.C. Tourbillon Qualité Fleurier, modelo que Bolsonaro recebeu de presente na Arábia - Divulgação

A associação do roedor da família dos murídeos com o gatuno, o amigo do alheio, tem base metafórica evidente: dividindo com os seres humanos à revelia deles seus locais de residência, escondido em porões, desvãos e buracos na parede, o bicho é ladrão de comida.

Bem menos clara é a origem da própria palavra rato, que se perde nas brumas do passado. Muitos etimologistas veem nela uma base onomatopaica, isto é, de imitação de um som natural –o ruído de dentões que roem.

Recorrendo mais uma vez a Corominas, somos informados de que "desde antes do século 8°" a palavra já colonizava diversas línguas, das neolatinas às célticas e germânicas (o inglês tem "rat", o alemão, "Ratte"). O termo "rattus", do latim vulgar, foi provavelmente um grande vetor de espalhamento, mas não se sabe se ele terá sido importado de outro lugar.

Ilustração de Bruce Eric Kaplan - Bruce Eric Kaplan

Se o sentido de ladrão pode ter só alguns séculos, mede-se em milênios a inimizade mortal entre seres humanos e ratos, responsáveis por disseminar doenças e arruinar incalculáveis cordilheiras de alimentos ao longo da história.

No mesmo século 14 em que a palavra desembarcava no português com a grafia "rratos", o horror e a repulsa inspirados por esses roedores à humanidade, matéria de pesadelos ancestrais, subiu mais alguns degraus com a chamada Peste Negra.

A epidemia de peste bubônica que a partir de 1348 matou milhões de pessoas na Europa –pelo menos um terço da população, segundo as estimativas mais conservadoras– teve os ratos como grandes vilões.

Quando, além de roubar, o rato mata, é natural que sua barra fique muito mais suja. Mas convém deixar claro que a marca de 700 mil mortes por Covid atingida pelo Brasil nesta semana não tem nada a ver com ratos literais.

No jogo de gato e rato entre as palavras e quem se mete a investigá-las, às vezes surgem curiosidades deste tipo: se os felinos domésticos são os maiores aliados dos seres humanos na luta contra os roedores que habitam os cantos escuros de suas casas, faz sentido que os dois animais se equivalham de alguma forma?

É o que ocorre com a ideia de ladrão, que tanto pode ser expressa pela palavra rato (numa de suas acepções figuradas, como vimos) quanto pelo termo gatuno (que só tem esse sentido mesmo). Como é possível que inimigos históricos acabem sendo sinônimos?

Existente em português desde o século 18, gatuno veio do espanhol e em sua origem queria dizer simplesmente "relativo a gato". Gato que, na mesma língua, figura há séculos entre os sinônimos de ladrão.

A associação nesse caso é com o modo furtivo, a agilidade e o silêncio com que os gatos se movem, em especial à noite, feito larápios.

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