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Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

A era de ouro do analfabetismo crítico

Por que o falso García Márquez que bomba nas redes deve nos preocupar

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A crônica em forma de diálogo leva o título "Como fazer amor" e a assinatura de "Gabriel García Márquez". Não admira que, com credenciais tão chamativas, circule há semanas pelas redes, compartilhada com sucesso sempre garantido.

"Ah, só podia ser o nosso Gabo!", "Nossa, amo Gabriel García Márquez", "Quanta sensibilidade, perfeito!", "Só mesmo a literatura pra nos trazer tanta verdade humana" são alguns dos comentários que o texto vem suscitando.

Até aí, podia ser uma história bonita: as reflexões de um grande escritor morto sobre o amor continuam a comover leitores no mundo digital, tirando-os do embotamento do dia a dia. Não é inspirador?

Mais do que isso, uma prova de que, mesmo enamorada outra vez do fascismo e à beira de uma catástrofe ambiental sem precedentes, a velha humanidade ainda nos permite ter alguma esperança, certo?

Errado. O sucesso feito por "Como fazer amor" é parte do problema e não da solução. García Márquez é tão autor dessa crônica quanto eu escrevi um romance chamado "Cem Anos de Solidão".

Mulher faz foto de lambe-lambe da série 'Pelé Beijoqueiro', do artista Luis Bueno, que mostra Pelé beijando García Márquez, no Centro Cultural Gabriel García Márquez, em Bogotá - AFP

Como eu sei disso? Entre incontáveis razões, porque o escritor colombiano ia preferir encarar um pelotão de fuzilamento a escrever uma frase como "tocar-nos com a ternura dócil de uma carícia que se expanda docemente até morrer num abraço", pérola de pieguice que no tal diálogo tem como resposta "Ai, que lindo".

Também é certo que preferiria levar um soco no olho de um ex-amigo a, satisfeito com a própria argúcia, pular por um instante fora do diálogo e pontuar seu compêndio de frases açucaradas com este arremate narrativo anglófilo: "É sobre isso".

Como sabe qualquer pessoa que tenha um mínimo de horas de voo na internet, esse "Gabriel García Márquez" é só o caso mais recente de falsa autoria em que um grande nome da história da literatura aparece nas redes assinando fragmentos textuais de ruindade assustadora. E convencendo multidões.

Um parente, portanto, daquelas Clarices derramadas, Machados burros, Drummonds desprovidos de talento, Verissimos cultores de palavrões, Pessoas semialfabetizados e Saramagos enfileiradores de pontos de exclamação que poluem nossa paisagem textual há pelo menos duas décadas.

Há pessoas que consideram o fenômeno das citações falsas uma simples e divertida curiosidade internética, no máximo um aborrecimento menor, sem significado relevante. Não sou uma delas.

Quando o presidente do Supremo Tribunal Federal faz um discurso solene citando um Drummond falsificado, como fez o ministro Luiz Fux às vésperas do Natal de 2020, um sinal de alerta deveria se acender em nossa cabeça.

Quando amigos e conhecidos que julgávamos leitores dotados de noção passam adiante, sem pensar duas vezes, uma barbaridade como esse "Como fazer amor", muitas vezes escoltando-a com suspiros e olhinhos revirados de prazer, não me parece que tenhamos um problema desprezível nas mãos.

A praga internética das falsas citações precedeu —e prenunciou— a atual epidemia de credulidade diante das mais escandalosamente inverossímeis imagens geradas por IA.

Nossas taxas alarmantes de analfabetismo literário, combinadas com nossas taxas calamitosas de analfabetismo imagético, apontam para um acachapante analfabetismo crítico que pode custar muito caro.

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