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Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

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O cérebro na hora da morte

Último sopro de atividade é compatível com consciência, mas é preciso morrer para ver e crer

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Olha a neurociência se metendo na nossa morte, além de tudo o que já faz pela vida humana: um registro oportunista da atividade cerebral de um idoso que morreu subitamente em seu leito de hospital, sob monitoramento completo, confirmou o que já se sabia valer para...ratos morrendo controladamente em laboratório.

O estudo ganhou menção no jornal O Globo de domingo (21) como se fosse coisa nova, e o Instagram está desde então em polvorosa com o assunto, mas novidade o estudo não é mais —o artigo em questão foi publicado em fevereiro de 2022 no periódico Frontiers in Aging Neuroscience.

Mas como eu também perdi a notícia quando ela era novidade, aqui vai.

Quarto em unidade hospitalar na França - Reuters

A notícia: a 30 segundos da parada cardíaca, minutos após a última série de convulsões cerebrais, quando o coração já batia errado, comprometendo o abastecimento energético do cérebro, a atividade do cérebro do idoso, em vez de se dissipar, se converteu a ondas elétricas rápidas, na frequência dita gama, que em pessoas saudáveis são sinal de...consciência. E mais: já em parada cardíaca, quando toda a atividade cerebral rapidamente cessa, os primeiros 30 segundos ainda assim mostravam alguma atividade gama.

As ondas gama, rápidas e de pequena amplitude elétrica, indicam atividade neuronal localizada em pequenos grupos dinâmicos dentro do cérebro (como pequenas rodinhas de conversa), em vez da atividade lenta, sincronizada pelo cérebro inteiro e de grande amplitude (como todas aquelas rodinhas agora berrando a mesma coisa). Somente o primeiro estado é compatível com a complexidade da experiência consciente.

Portanto, embora a persistência e até aumento das ondas gama não sejam garantia de que o senhor em questão estivesse consciente do seu estado de morte em progresso, o achado é perfeitamente compatível com um estado de consciência de...alguma coisa, muito provavelmente reativando os registros internos do próprio cérebro. É o que fazemos quando fechamos os olhos e nos isolamos das influências do ambiente: o cérebro não para de funcionar, ele apenas muda a fonte da sua atividade, de fora para dentro.

Acontece que esses registros internos são o que chamamos de memórias. No cérebro morrente, fazendo recurso das suas últimas reservas de glicogênio na falta de oxigênio trazido por sangue fresco, faz todo sentido que o último surto de atividade ignore os sentidos, caros demais para serem levados em consideração quando o orçamento míngua, e favoreça o que fala mais forte: aquelas conexões cerebrais reforçadas repetidamente ao longo da vida, que são nossas memórias mais queridas.

Claro que o registro da morte deste senhor, agora compartilhado com o mundo por cortesia da sua família, pode não ser um caso representativo. Mas um estudo feito dez anos atrás mostrou que ratos morrendo em laboratório passam por exatamente a mesma sequência de eventos. Morremos tal qual os ratos, provavelmente; a diferença é que, com mil vezes mais neurônios corticais, temos muito mais e mais complexas memórias reativáveis no fim da vida, como um último "hoorah".

Quem viver verá, dizem, assim como dizem que é preciso ver para crer. No caso da experiência da morte, o único evento absolutamente garantido para todos nós, é preciso morrer para saber. Que seja a última experiência neurocientífica da minha vida: essa eu não quero perder por nada.

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