Siga a folha

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Em Roraima, crianças no limbo

Notável, concessão de refúgio a venezuelanos expõe falhas no acolhimento de crianças e adolescentes

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Boa Vista, Roraima. 8 de outubro de 2019. O corpo de Jesús Alisandro Sarmerón Pérez, 16 anos, é encontrado em um saco plástico com sinais de tortura perto de um abrigo. Venezuelano, o adolescente ingressara desacompanhado em junho deste ano no Brasil. O caso evidencia a grave condição de crianças e adolescentes desacompanhados oriundos do país vizinho.

Entre as poucas boas notícias em direitos humanos neste ano, é digno de nota que o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), atrelado ao Ministério da Justiça, tenha concedido, de uma vez só na última quinta (5), a condição de refugiados a quase 22 mil venezuelanos. Usou-se cruzamento de dados de maneira inteligente para subsidiar a decisão, que beneficiou pouco mais de 10% da longa fila de solicitações pendentes na mesa do Conare. Representa, ademais, um passo além da acolhida humanitária utilizada no caso de haitianos e sírios.

Notável que seja, as dificuldades recaem na integração e acolhimento destes refugiados no Brasil. Com apenas 0,4% da sua população composta por migrantes, Brasil ainda engatinha em políticas de acolhimento, apesar dos avanços legais.

A monstruosidade do caso de Jesús —o qual deve ser investigado, e seus responsáveis, punidos— expõe falhas estruturais no sistema de acolhida de crianças e adolescentes venezuelanos em Roraima, público que por lei deveria receber prioridade absoluta. No último dia 5, além de contar a história de Jesús, a ONG Human Rights Watch revelou que, entre maio e novembro deste ano, outras 529 crianças e adolescentes —90% delas entre 13 e 17 anos— ingressaram da Venezuela em Roraima desacompanhadas. Os dados são da Defensoria Pública da União, que atua na região.

Como no Purgatório de Dante, crianças e adolescentes venezuelanos em Roraima habitam um limbo. O limbo em que habitam é composto por uma teia de políticas públicas indignas. E, por isso, tragédias como a de Jésus não devem ser naturalizadas. São engendradas pelos donos do poder, local e federal.

Parte desta teia é um debate judicial. Adolescentes venezuelanos são adolescentes ou são venezuelanos? A pergunta, que pode parecer idiossincrática à primeira vista, tem gerado efeitos perversos em Roraima.

No dia 13 de setembro, o Juiz Marcelo Lima de Oliveira em Boa Vista decidiu interditar a acolhida de adolescentes venezuelanos em abrigos estaduais para adolescentes dada a sua superlotação. Felizmente, não acatou, no entanto, o pedido do MP de transferi-los imediatamente para abrigos a migrantes. Incumbiu o governo de Roraima, em cooperação com o Executivo federal, da busca de soluções para acolhimento.

O debate não é trivial. Em abrigos para adolescentes, estes seriam melhor acolhidos e poderiam frequentar a escola, enquanto em abrigos da Operação Acolhida –uma iniciativa federal para acolher migrantes venezuelanos– poderiam ficar misturados com adultos com os quais nada compartilham exceto a nacionalidade.

Outra parte desta teia é a inação das autoridades locais e federais. Brigam governos municipais, estaduais e federais pela responsabilidade pelas crianças e adolescentes desacompanhados. Disputam até quantos de fato são, em ato mágico de realidade paralela. 26 organizações de direitos humanos aguardam resposta do governo de Roraima à carta por elas enviada em setembro para ajudar a construir plano de acolhida.

Enquanto Gleisi Hoffmann e Bolsonaro se digladiam sobre se se vive no céu ou inferno na Venezuela de Maduro, 529 crianças e adolescentes desacompanhados cruzam a fronteira para o purgatório de Roraima. Acolhê-las adequadamente deveria ser a prioridade do debate político. Não tem sido.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas