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Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Tom Farias

Reflexões sobre as longas travessias que nunca cessam de nos atravessar

Denúncias contra Silvio Almeida não são para baixar a autoestima, mas para nos enxergarmos mais

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"A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos", escreveu Machado de Assis no conto "Pai Contra Mãe". Como se sabe, a história foi escrita cerca de 18 anos depois do fim da escravidão e foi publicado no volume "Relíquias da Casa Velha" (1906). A frase que abre a narrativa martela em nossa memória e fica ali instalada do princípio ao fim, como um velho filme que gira sem som e lentamente. É um dos melhores textos ficcionais escritos pelo Bruxo do Cosme Velho sobre o período escravista brasileiro.

Silvio Almeida, ex-ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil. Na última quinta-feira (5), ele foi acusado de assédio sexual por várias mulheres. - AFP

Desde a semana passada, vivemos dilema que se assemelha. Estamos sendo postos à prova de uma das mais difíceis travessias dos últimos séculos, tão caudalosas como as que vivenciaram nossos antepassados africanos, em embarcações pelos mares do Atlântico, durante os 350 anos de escravismo no Brasil.

Aqui não se faz alusão apenas a um ex-ministro e a uma atual ministra, os alvos das notícias; estamos falando de afrobrasileiras e afrobrasileiros, que tenazmente lutam e suam todos os dias por um lugar ao sol, neste reino (com ranço colonial) das desigualdades para negras e para negros, que alcança toda a nação.

Somos 55,5% do total da população brasileira, saldo que cresce a cada década, como atesta o Censo Demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Portanto, há negros e negras, desde os grandes centros urbanos às cidades mais remotas do país, que buscam referências para respirar, caminhar e sobreviver. Alguém precisa ser o espelho para muitas dessas pessoas negras, que desde crianças, buscam elo positivo de valorização de suas personalidades, pertencimento e raiz ancestral.

Pelo que presenciamos, lemos e escutamos por todos esses dias, o período das longas travessias parece não ter terminado. Ele ainda nos rodeia, provando que é preciso estarmos sempre alertas, ante as salvaguardas da desesperança e da dor.

De longe é assim, e, lógico, não vai mudar agora porque queremos, desejamos e lutamos. As cicatrizes continuam a nos marcar profundamente, e ainda sangram, até porque, durante o período histórico, que ficou no passado, a sociedade procurou tratar fraturas expostas — a integração do negro à sociedade, pela produção e o consumo —, com emplastros de esparadrapo ou Band Aid. Não funciona em perfeição. Uma hora dá ruim.

Em qualquer situação, o corpo negro chega primeiro — e não há chancela da presunção de inocência, do mérito acadêmico, da notoriedade constituída. Pelo contrário. Nossas instituições não se modernizaram para tratar a igualdade, não se atualizaram para a prática da justiça. Esta é ainda uma pauta cara do Movimento Negro. Quando alguém, como nós, rasga este estatuto, constituição dos nossos primórdios, põe em risco (ainda mais), enquanto sujeito social, toda a nossa segurança, já precarizada e sujeita a ataques, ofensas e violências, sobretudo as de ordem física e psicológica.

Com largas costas quentes, o poder constituído pratica os mesmos desaforos do período hediondo escravista e desafia a todos (negros, em geral), afirmando seus arraigados preceitos. Termos ofensivos — "macacos", "escravos", "volta pra África" —, são usados sem qualquer cerimônia, em escala sociocultural, com o amparo e força da opinião pública dominante.

Um exemplo. Os três filhos adolescentes de diplomatas negros, acompanhados de um amigo branco, que foram grosseiramente abordados por policiais militares, no mês de julho, em Ipanema, não sofreram racismo, segundo o juiz Leonardo Rodrigues da Silva Picanco, do Ministério Público estadual, de comum acordo com a Auditoria da Justiça Militar.

Os policiais envolvidos viraram réus por constrangimento ilegal e ameaça, nada além disso. Evidente que não foi só ameaça e constrangimento o que sofreram esses jovens, na faixa de 13 e 14 anos. Esse salvo-conduto de reduzir os efeitos do racismo, é antigo entre nós. Que justiça, totalmente branca — e militar —, interessa confrontar pessoas negras e brancas?

Mesmo sendo filhos de importantes diplomatas —do Gabão e Burkina Fasso —, falando língua estrangeira, o tratamento racializado, humilhante e violento, não poupou seus corpos negros.

Trago essas reflexões acerca do caso Silvio Almeida-Anielle Franco, sobre abuso de poder e a força do assédio sexo-moral-racial, que nos abalou a todos, emocional e psicologicamente, enquanto população negra.

Por conta disso, fica provado que, a qualquer tempo, somos corpos sujeitos a tais temperamentos. Mas é preciso fazer uma distinção. No geral sabemos que quando denúncias e agressões, caem sobre pessoas negras, a ação é muito mais assertiva e contundente.

Isto não é uma defesa. Em qualquer circunstância, seja por parte do agressor negro ou do branco, é preciso cortar o mal pela raiz, a bem da verdade. O caso Silvio Almeida-Anielle Franco tem tudo para servir como ingrediente a essa lição.

Nossas memórias carregam inúmeros contextos, sobre abusos, desmandos, violações, racismos, tratados, no geral, como casos de polícia. Fica o alerta aqui, no uso da mesma medida, o peso precisa ser equivalente.

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