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Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

Descrição de chapéu desigualdade de gênero

Mulher criticada por não ser o que a sociedade exige é sinal do nosso desprezo pela humanidade

Desigualdade entre gêneros, de tão generalizada, tende a passar despercebida em sociedades mais cooperativas

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Ainda que a cegonha tenha nos largado numa família amorosa e que tenhamos competências excepcionais, somos fadados a nascer num determinado corpo. A loteria genética define cores, texturas e formas, cabendo à linguagem nomear, classificar e atribuir valor ao que, em si mesmo, não quer dizer nada. "Loteria" é uma boa palavra porque aponta tanto para a probabilidade estatística de nascermos com determinados atributos físicos, quanto para os valores associados a eles.

Nossa aparência está de antemão precificada, não havendo nada de neutro aqui. Quanto vale o sujeito que habita um corpo masculino, alto, branco, magro, musculoso, com traços simétricos? E um sujeito que habita um corpo feminino, baixo, negro, gordo, com traços irregulares ou com alguma deficiência?

Diferenças são usadas sistematicamente para justificar o poder de alguns sujeitos sobre outros. Onde estão, majoritariamente, os corpos negros, senão nas periferias do mundo, onde geram outros corpos negros que ali permanecem geração após geração?

Marília Mendonça se apresenta em show em São Paulo - Leo Franco/AgNews

Se tivesse que elencar a maior mazela humana, diria que é nossa impossibilidade de reconhecer que há uma vida que vale tanto quanto a nossa encarnada no corpo do outro. Tema importantíssimo para a psicanálise, que Lacan formula em seus estudos sobre o registro imaginário: a descoberta de si vem junto com a descoberta do outro a quem amo e odeio. O que o outro quer de mim? O que sou para ele? Como não sofrer em suas mãos? Como fazê-lo me amar e como controlá-lo?

Não há povo que não tenha criado castas superiores e inferiores, sendo que a desigualdade entre gêneros, de tão generalizada, tende a passar despercebida em sociedades mais cooperativas.

"Meu corpo, minhas regras", não à toa, é um dos slogans políticos mais fortes da luta pelos direitos das mulheres na nossa sociedade.

Uma sociedade na qual a relação entre os humanos seja absolutamente equânime, levando em conta as particularidades, ainda está para ser construída.

Em um mundo no qual a sobrevivência diz cada vez menos respeito à força física, o valor também se desloca para as competências mentais, o que permite que um homem como Stephen Hawking, por exemplo, vítima de esclerose lateral amiotrófica, seja um ícone mundial. Claro que suas chances seriam ainda mais improváveis caso sua genialidade emergisse num corpo negro, de mulher, ou ambos.

Não à toa, Judith Butler causou incômodo, em 1993, com seu livro "Corpos que Importam", no qual aponta que a luta feminista não deve se deter à denúncia das injustiças que sofrem mulheres, negros, imigrantes, transexuais... Essa luta é fundamental, mas ela deve servir de estratégia, não um fim em si mesmo. É a lógica que separa corpos humanos entre os que merecem e os que não merecem viver que deve ser atacada ininterruptamente. Nossa batalha deve ser no sentido do reconhecimento de todo e qualquer sujeito habitando todo e qualquer corpo. Como diz Virginie Despentes, autora de "Baise-Moi", "Teoria King Kong" e "Vernon Subutex", "o feminismo que me interessa é o das putas, das feias e das lésbicas". Um feminismo que defenda que só sejam consideradas mulheres pessoas nascidas com útero, por exemplo, não me interessa absolutamente.

Mulheres criticadas por não corresponderem ao corpo que lhes imputam é o resultado do desprezo pela humanidade em cada um de nós.

Descanse em paz, Marília Mendonça.

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