A questão do trauma é assunto quentíssimo para a teoria psicanalítica, que caiu na boca do leigo na forma da insistente pergunta: “ele vai ficar traumatizado?”. A ideia de que ficamos traumatizados a cada lufada de vento é surpreendentemente atual e convive com nossa forma midiática e equivocada de lidar com o tema.
O trauma fez história na psicanálise com a célebre frase de Freud escrita em carta a Wilhelm Fliess “não acredito mais na minha neurótica” (21.set.1897), leia-se, na “minha teoria das neuroses”. Ali Freud dá sua virada epistemológica, pois reconhece que, se todos os pacientes tivessem sido molestados sexualmente por pais, mães e babás, Viena seria um antro de pedófilos. Considerando a si mesmo neurótico, Freud não conseguia imaginar o bom e velho Jacob Freud em atitudes libidinosas para com ele. Daí que o segredo revelado na célebre carta a Fliess promove uma discussão interessantíssima que rende frutos até hoje para a psicanálise (sugiro artigo de Philippe van Haute e Tomas Geyskens na Revista A Peste de 2010).
Nem todos foram abusados sexualmente, embora fantasias de abuso sejam recorrentes na clínica. Separar fato e fantasia é o estado da arte, mas está longe de resolver a questão. Ainda que o paciente tenha sofrido assédio de fato, o psicanalista quer, acima de tudo, saber o que ele fez com isso. Mesmo porque, salvo situações nas quais o abuso ainda está em curso e algo pode ser modificado na realidade do sujeito, lidamos com o intervalo de anos entre o evento e seu reconhecimento. E, para quem acha que “agora já foi, não tem mais jeito”, lamento nunca terem tido a oportunidade de testemunhar uma pessoa estancando a transmissão geracional de abusos e violências —sabemos como traumas não elaborados são reproduzidos nas gerações posteriores de múltiplas formas.
Mas para além das violências flagrantes, o que insiste na pergunta “ele vai ficar traumatizado?” é a delirante suposição contemporânea de que teríamos como viver uma vida sem marcas. Daí a importância de entender o trauma para além da definição descrita em ímãs de geladeira.
A experiência dos seres humanos —com seus recursos limitados para abarcar a vida— é intrinsecamente traumática. O elefante não cabe na lata de molho de tomate, digamos assim, sendo o elefante a vida, e a lata, o aparelho psíquico ou, para Lacan, aparelho de linguagem. Isso que fica de fora, a imensidão da vivência, sobra e insiste em nos assombrar —recomendo “Escrever o Trauma, de Freud a Lacan” de Sandra Leticia Berta. Mas, de novo, se estamos condenados ao espanto diante da vida, não estamos condenados a fazer sempre a mesma coisa com isso. Podemos fazer arte, ciência, religião ou, desgraçadamente, necropolítica, pois se trata de uma escolha, portanto, da ética.
Do trauma fazem parte: o acontecimento fortuito, contingente —que nem sempre pode ser evitado— e o fato de que a vida sempre é demais para quem tem a linguagem como condição de existência. Pais desesperados que seus filhos não fiquem traumatizados e adultos que se acham incapazes de seguir a vida diante da própria história sofrem do mesmo engano. A ideia de que haveria uma existência humana na qual a vida, a morte, a sexualidade, o amor, as perdas seriam encaradas sem deixar marcas e cicatrizes e, que, não havendo incidentes, tudo correria liso. Está aí o delírio do homem pós-moderno que sonha em ser clonado e viver nos subterrâneos de Marte, enquanto deixa a combalida Terra para as baratas.
Vida sem trauma, só debaixo da terra mesmo.
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