Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

O trauma na berlinda

O que traumatiza, afinal?

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A questão do trauma é assunto quentíssimo para a teoria psicanalítica, que caiu na boca do leigo na forma da insistente pergunta: “ele vai ficar traumatizado?”. A ideia de que ficamos traumatizados a cada lufada de vento é surpreendentemente atual e convive com nossa forma midiática e equivocada de lidar com o tema.

O trauma fez história na psicanálise com a célebre frase de Freud escrita em carta a Wilhelm Fliess “não acredito mais na minha neurótica” (21.set.1897), leia-se, na “minha teoria das neuroses”. Ali Freud dá sua virada epistemológica, pois reconhece que, se todos os pacientes tivessem sido molestados sexualmente por pais, mães e babás, Viena seria um antro de pedófilos. Considerando a si mesmo neurótico, Freud não conseguia imaginar o bom e velho Jacob Freud em atitudes libidinosas para com ele. Daí que o segredo revelado na célebre carta a Fliess promove uma discussão interessantíssima que rende frutos até hoje para a psicanálise (sugiro artigo de Philippe van Haute e Tomas Geyskens na Revista A Peste de 2010).

De costas, moça branca com cabelos compridos azuis e boné branco entra na água do mar de braços abertos
Kaylan Bailey, 20, sobrevivente do massacre de Aurora, no Colorado (EUA), visita praia na Flórida com outros jovens sobreviventes de ataques a tiros - Leah Millis - 25.mar.19/Reuters

Nem todos foram abusados sexualmente, embora fantasias de abuso sejam recorrentes na clínica. Separar fato e fantasia é o estado da arte, mas está longe de resolver a questão. Ainda que o paciente tenha sofrido assédio de fato, o psicanalista quer, acima de tudo, saber o que ele fez com isso. Mesmo porque, salvo situações nas quais o abuso ainda está em curso e algo pode ser modificado na realidade do sujeito, lidamos com o intervalo de anos entre o evento e seu reconhecimento. E, para quem acha que “agora já foi, não tem mais jeito”, lamento nunca terem tido a oportunidade de testemunhar uma pessoa estancando a transmissão geracional de abusos e violências —sabemos como traumas não elaborados são reproduzidos nas gerações posteriores de múltiplas formas.

Mas para além das violências flagrantes, o que insiste na pergunta “ele vai ficar traumatizado?” é a delirante suposição contemporânea de que teríamos como viver uma vida sem marcas. Daí a importância de entender o trauma para além da definição descrita em ímãs de geladeira.

A experiência dos seres humanos —com seus recursos limitados para abarcar a vida— é intrinsecamente traumática. O elefante não cabe na lata de molho de tomate, digamos assim, sendo o elefante a vida, e a lata, o aparelho psíquico ou, para Lacan, aparelho de linguagem. Isso que fica de fora, a imensidão da vivência, sobra e insiste em nos assombrar —recomendo “Escrever o Trauma, de Freud a Lacan” de Sandra Leticia Berta. Mas, de novo, se estamos condenados ao espanto diante da vida, não estamos condenados a fazer sempre a mesma coisa com isso. Podemos fazer arte, ciência, religião ou, desgraçadamente, necropolítica, pois se trata de uma escolha, portanto, da ética.

Do trauma fazem parte: o acontecimento fortuito, contingente —que nem sempre pode ser evitado— e o fato de que a vida sempre é demais para quem tem a linguagem como condição de existência. Pais desesperados que seus filhos não fiquem traumatizados e adultos que se acham incapazes de seguir a vida diante da própria história sofrem do mesmo engano. A ideia de que haveria uma existência humana na qual a vida, a morte, a sexualidade, o amor, as perdas seriam encaradas sem deixar marcas e cicatrizes e, que, não havendo incidentes, tudo correria liso. Está aí o delírio do homem pós-moderno que sonha em ser clonado e viver nos subterrâneos de Marte, enquanto deixa a combalida Terra para as baratas.

Vida sem trauma, só debaixo da terra mesmo.

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