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Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

Descrição de chapéu Mente Cracolândia drogas

A vida fica um tédio para quem não se envolve com a dor

ONGs que atuam no centro de São Paulo trabalham com semelhantes, não com zumbis

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A batalha diária é por segurança, conforto e estabilidade. No meio dessa aspiração idílica por controle tem a vida real e o sofrimento que dela decorre. E é surpreendente que mesmo depois de Freud e de Vinicius de Moraes ainda tenhamos que reiterar que há um sofrimento intrínseco ao humano e que a felicidade é episódica. Trata-se do sofrimento de sabermos da nossa finitude, dos desencontros amorosos, das falsas expectativas, de nossa discordância com a gente mesmo, de nossa pequenez diante do imponderável. Quem não puder admiti-lo, capturado pela promessa de plenitude neoliberal, tem maiores chances de adoecer.

Há também o sofrimento contingencial que decorre dos maus encontros, dos infortúnios, dos raios que às vezes insistem em cair sobre a mesma pessoa seguidas vezes. Rezamos para que não aconteçam ou para que tenhamos a força de superá-los. São situações que nos permitirão vislumbrar do que somos feitos.

Mas tem um sofrimento que impingimos uns aos outros coletivamente que revela nossa imoralidade no trato social e que diz respeito ao ataque sistemático às condições de existência do outro. Trata-se de sofrer por ser submetido à fome, ao frio, ao desabrigo, submetido a condições desumanas, ao desrespeito sistemático, ser humilhado por sua condição social. José Mauro Gonçalves Filho cunhou o termo "humilhação social" em célebre artigo de 1998, no qual definiu essa condição psíquica de sofrimento como problema político. Ele decorre do fracasso da civilização como a conhecemos hoje.

Sede do Teatro de Contêiner/Cia. Mungunzá, na rua dos Gusmões, Santa Ifigênia, região central de São Paulo - https://www.ciamungunza.com.br/teatro-de-conteiner-mungunza

No Titanic do capitalismo —que afunda pela arrogância de quem insiste em ignorar o iceberg— não estão previstos botes salva-vidas para todos desde a zarpagem. Cidadãos à margem da sociedade, seja no centro da nossa capital, seja em sua periferia, revelam formas possíveis de encarar tanta dor.

Drogas lícitas e ilícitas que têm como função amortecer e distrair o peso da existência estão presentes em todas as classes sociais e não são menos úteis para quem está à margem. Estão aí as happy hours etílicas, os porres de fim de semana, a maconha recreativa, os antidepressivos, ansiolíticos e todas as outras formas de amortecer o tranco. Não seria diferente para quem vive em condições degradantes como vemos no coração da cidade, atualmente sequestrado pelo tráfico de drogas.

Mulheres costurando no coletivo Tem Sentimento, na região central de São Paulo - https://www.instagram.com/coletivo_temsentimento/

Não há quem não deseje ardentemente recuperar umas das regiões metropolitanas mais lindas e culturalmente ricas do mundo. Mas ignorar que o problema de saúde que se vê lá é o resultado da indignidade como são tratadas essas pessoas é retornar infinitamente à estaca zero. Internação compulsória não resolve o problema da moradia, do cuidado, do trabalho. Não se desintoxica uma pessoa da experiência humilhante de viver e criar seus filhos ao relento, de vê-los passar fome e não ter o que oferecer, de não ter um trabalho do qual se orgulhar. A pessoa sairá da internação em direção à mesma realidade que a colocou lá.

Os institutos que trabalham na região, remanescentes de projetos públicos desativados, partem do único pressuposto que pode mudar algo ali: trabalha-se com o semelhante, não com zumbis. Estão ali, entre outros, o Teatro de Contêiner/Cia Mungunzá; Coletivo Tem Sentimento; Trampo, Teto e Tratamento; É de Lei; Fórum Mundaréu da Luz; Birico; Paulestinos; Instituto Luz do Faroeste.

Ação do coletivo Trampo, Teto e Tratamento, na região central de São Paulo - https://www.facebook.com/TetoTrampoTratamento/

A relação que eles estabelecem com o entorno é horizontal porque eles sabem que nossa humanidade também está em jogo ali. O coração da cidade bate forte e com muita emoção. Para quem estiver à procura dela, recomendo conhecer e contribuir com esses verdadeiros núcleos de resistência.

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