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Chef do estrelado Noma explica como comida moldou sociedade em série

Banana e atum estão entre os oito ingredientes citados em 'Onívoros', que estreia nesta sexta (19) na Apple TV+

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São Paulo

Um atum e uma banana-nanica entram num restaurante. Poderia ser o começo de uma piada absurda — absurdamente ruim—, mas o assunto é sério.

René Redzepi, chef do multipremiado restaurante Noma, de Copenhague, na Dinamarca, se escora nestes exemplos para demonstrar o poder da comida para moldar a sociedade humana. Como se percebe, não é pequena a ambição da série "Onívoros", que estreia na plataforma Apple TV+ nesta sexta (19).

René Redzepi e a equipe do Noma em 'Onívoros' da Apple TV+ - Divulgação/Apple TV+

Em parceria com o roteirista e produtor-executivo Matt Goulding, o chef dinamarquês se propõe a explicar a natureza humana a partir de oito ingredientes culinários, cada qual com um episódio próprio. Os outros seis: pimenta, sal, porco, café, arroz e milho.

"Foi a oportunidade de usar a comida como uma lente para entender a própria essência da nossa humanidade", afirma Goulding. Ele e Redzepi concederam entrevista à Folha, por teleconferência.

O chef do Noma, pentacampeão do 50 Best Restaurants antes de ser encostado na posição de hors-concours (fora da competição), era alvo de convites do setor audiovisual. A casa anunciou que vai fechar as portas no final de 2024.

"Eu tinha três opções na mesa", diz Redzepi. "Um programa de receitas, uma série de viagens, talvez pela Escandinávia com alguma celebridade, ou ser jurado de uma competição culinária."

Ele optou por nenhuma delas. Em vez disso, mirou nos grandiosos documentários de história natural e vida selvagem da rede britânica BBC.

"Por que não fazer algo com a abrangência, a dedicação, o respeito e o capricho de ‘Planeta Terra’ [série documental da BBC que se tornou referência no gênero]"?

"Tipo o ‘Planeta Terra’, mas com café e arroz em vez de leopardos ou insetos ou a Amazônia", conclui Redzepi.

Interior do Nome, restaurante em Copenhague

De fato, "Onívoros" exibe uma grandiloquência incomum para produções de gastronomia. São longas tomadas aéreas feitas com drones, uma cidade inteira coberta de pimentões vermelhos a secar sob o sol e até o balé submarino de um cardume de atuns.

"Filmamos em 16 países de cinco continentes", diz Goulding. "Na caçada ao atum selvagem no sul da Espanha, conhecida por almadraba, tínhamos uma equipe de 55 a 60 profissionais em terra. Era gente com câmeras debaixo e sobre a água".

A almadraba a que ele se refere é uma armadilha labiríntica que pescadores da Andaluzia instalam no oceano, próximo à entrada do mar Mediterrâneo, para capturar o atum bluefin. A arapuca teria sido inventada pelos fenícios e seguiu em uso, com poucas inovações, nas mãos dos romanos, dos mouros e dos espanhóis modernos.

O que mudou foi o apetite pelo bluefin. Usado em conservas e ração para gatos até meados do século 20, ele caiu no gosto da população e dos chefs do Japão pós-guerra.

O peixe escasseou nos mares do arquipélago, e isso obrigou os japoneses a buscarem-no em águas distantes. Mas havia a questão do transporte. O atum precisava chegar fresco ao Japão.

Foi nos anos 1970 que Akira Okasaki, um jovem funcionário da Japan Airlines, desenvolveu um sistema logístico com contêineres refrigerados e transporte aéreo, para levar atum da costa canadense até Tóquio em questão de quatro dias após a pesca.

Se hoje você encontra temaki na loja do posto de gasolina, é graças a Akira. O esquema da JAL foi replicado com o atum espanhol e de outros mares (inclusive a costa brasileira): ele chega ao Japão, é leiloado, fracionado e distribuído para restaurantes de sushi do mundo inteiro.

Já a banana, outra personagem da série de Redzepi e Goulding, teve papel crucial na geopolítica da América Latina do século 20. A americana United Fruit Company, dona de extensas plantações, exerceu influência pesada no poder em países como Honduras, Guatemala e Colômbia.

A United Fruit e seu regime de monocultura também são responsáveis por espalhar o fruto tropical pelos países ricos, que conhecem apenas um tipo de banana: a cavendish, subgrupo ao qual pertence a variedade banana-nanica.

Em contraponto a esse extermínio da diversidade bananeira, "Onívoros" conta a saga de Vinod Nair, um dos muitos heróis da série. Fazendeiro em Parassala, no sul da Índia, ele preserva um acervo de mais de 400 variedades de banana.

A bananoteca de Nair, mais do que uma excentricidade, tem sido fundamental nos estudos genéticos para
impedir que uma praga de fungos aniquile as plantações de cavendish.

Nem todos os episódios tratam de alimentos que alteraram o destino da população mundial. "Se escolhêssemos muitas comidas assim, as histórias ficariam um pouco parecidas demais", diz Redzepi.
Desse modo, uma das tramas mais curiosas de "Onívoros" diz respeito a como quase nada mudou, por séculos a fio, numa localidade remota do oeste da Espanha.

Em La Alberca, com pouco mais de mil habitantes, o porco é venerado como nos tempos medievais. E a expressão "o porco" se refere a isso mesmo: um indivíduo suíno que, no dia de Santo Antônio, é eleito para vagar livre pelas vielas e ser tratado pelos aldeões como pet e semideus. No fim, não poderia ser diferente, ele vira presunto.

O porco, assim como os outros heróis retratados, aparece muito mais na tela do que o chef que chancela a credibilidade do documentário. René Redzepi não é um apresentador ao estilo de Anthony Bourdain (1956-2018), que mete a cara e rouba a cena.

Discreto, o dinamarquês se limita a narrar os episódios e, em poucas ocasiões, surgir consumindo o alimento abordado. Se não ajuda demais, tampouco atrapalha a dinâmica do programa. "Onívoros", a despeito do resultado que nem sempre corresponde à ambição dos criadores, é entretenimento de qualidade para quem gosta de comida.

Onívoros

Avaliação:
  • Quando: 19 de julho
  • Onde: Apple TV+
  • Elenco: René Redzepi
  • Produção: EUA, 2024. Criação: René Redzepi, Matt Goulding e Cary Joji Fukunaga

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