Siga a folha

Descrição de chapéu Dias Melhores

Sem nunca terem ido a cinema, alunos de projeto no Rio aprendem a fazer filmes

Projeto sem verba empodera adolescentes em escola em área rural do Rio

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Rio de Janeiro

Uma viagem de uma hora e meia de ônibus separa os alunos da Escola Municipal Adalgisa Nery do cinema mais próximo, e outra hora é necessária se a intenção é chegar ao centro da cidade.

Apesar do chão de terra, do mato alto e das cercas, ainda é o Rio de Janeiro. Não há muros visíveis, mas são muitos os invisíveis que o professor de história Ygor Lioi, 29, está tentando ultrapassar neste ano.

Ele criou no colégio um projeto que batizou de Cinescola, unindo seus maiores propósitos da sua vida para ensinar os adolescentes do 9º ano a produzirem seus próprios filmes, como ele mesmo foi ensinado em um projeto da escola de samba da Portela.

“Lembro da primeira vez que fui ao cinema, aos 4 anos, ver Rei Leão. Muitos aqui, com 13 a 16 anos, nunca tinham ido. Pensei: o que adianta falar de cinema se esses caras nunca consumiram?”.

 

Levou-os então a uma exibição em Botafogo, do outro lado do município —a escola fica em Santa Cruz, último bairro a oeste do Rio, conhecido por ter comunidades dominadas pela milícia e pelo tráfico.

Conseguiu cem ingressos com a produção do documentário “Eleições”, que mostra a campanha eleitoral para o grêmio estudantil de uma escola de São Paulo. Mas não tinha dinheiro para os ônibus, que teve de ratear com um colega.

Uma aluna se maravilhou quando viu pela janela o sambódromo da Sapucaí, outros se assustaram com a água a R$ 7 na zona sul, e muitos ficaram de boca aberta diante da tela. “Era a segunda vez do meu melhor amigo, ele ficava toda hora me catucando e dizendo: caraca Jonathan, olha isso, olha aquilo”, conta Jonathan Rodrigues, 15.

Só ali a turma começou a acreditar que o projeto poderia acontecer, mas faltava um empurrãozinho. Ygor acionou conhecidos até conseguir vídeos motivacionais de famosos como o ex-jogador Adílio e o pagodeiro Leandro Lehart.

Mas quem tocou mesmo os alunos foi Zico, ídolo do Flamengo. O silêncio diante da declaração gravada do craque desabrochou em gritos histéricos, tapas na coxa do colega ao lado e até choro. Se até o Zico acredita, por que não nós?

“A gente pensava que essa ideia de filme era pra pessoas que tinham condição. Virava um pra cara do outro e falava: isso não é pra mim”, diz Ariany de Souza, 15. Foram parando com a coisa de esconder o rosto e falar para dentro quando eram alvo da câmera.

Um dos pilares do projeto, o empoderamento, começava a parar em pé. Os demais, capacitação e visibilidade, também viriam com o processo, que incluiu visitas de artistas à escola e a ida a um festival de cinema, sempre com apoio dos colegas cineastas Nathalia Sarro e André da Costa Pinto.

“O cinema é uma maneira de desconstruir a memória oficial, contar histórias invisibilizadas. Enquanto professor de história, me incomoda quando alguém critica o menino que não sabe quem foi Napoleão. Ele precisa saber da realidade em que vive”, afirma Ygor.

Vieram então as etapas de escrita de roteiro, pitching (jargão para “vender uma ideia” oralmente), votação das histórias a filmar e finalmente a gravação, que começou em novembro. Cada aluno segue sua função no set (a escola), descrita em crachás.

Foram quatro curta-metragens escolhidos, todos documentais, abordando sonhos dos alunos e de seus pais, uma partida de futebol sem “panelinhas”, memórias afetivas usando músicas e poesias (de Ariany) e autismo e inclusão, de Alessandro de Barros, 14.

Ariany e Alessandro são as revelações de Ygor. Ela escreve poesia, compõe, canta e atua —dons que temia expor. Ele é autista e, após aprender o que era storyboard (ilustração das cenas) fez mais de 30.

“Costumo dizer que o Alessandro é a cara que queremos para o projeto, que é de inclusão, democratização e cidadania. Se eu não tivesse rompido com a lógica de achar que o ensino que vem da escola é o principal e não começasse a escutá-los, não teria descoberto os dois”, afirma o professor.

 

As dificuldades não foram poucas, resumidas pela falta de dinheiro. “Por que as regiões pobres da cidade não podem ter acesso à produção de cinema? Só o corpo de uma câmera dessas é R$ 6.000, sem contar lente nem áudio.”

Para gravar em definição 4K, colegas cineastas emprestaram os equipamentos e conduziram as filmagens. O dinheiro que sobrou Ygor gastou com HDs. Por isso não pode mais alugar ônibus e levar os alunos ao centro semanas atrás, quando o Cinescola recebeu com outras 85 iniciativas o prêmio Paulo Freire, da Assembleia Legislativa do Rio.

O reconhecimento deu um gás a mais para, talvez, manter o projeto no ano que vem, mas ele lamenta a falta de cursos de capacitação audiovisual para professores. 

“Quantas Arianys e Alessandros não há em outras escolas?”, indaga. “Eu descobri esses talentos, e os outros professores que não têm como fazer loucuras? É loucura, mas é uma na qual eu acredito.”

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas