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Descrição de chapéu Rio de Janeiro Folhajus

Por amor, dinheiro e poder, mulheres recorrem ao tráfico e lotam cadeias

Líderes como Gatinha da Cracolândia, Sandra Sapatão e Hello Kitty são minoria na massa feminina do crime

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Rio de Janeiro

Fabiana Escobar subiu a Rocinha naquela noite para falar com Bem-Te-Vi, dono do morro, e recolher o dinheiro das despesas de seu marido na cadeia. Avistou-o no fim da rua, de longe, parado, mas resolveu desviar o caminho quando uma menina a convidou para uma festa.

Foi o tempo de pegar um copo de vinho e ir para o terraço até que uma explosão e tiros em um transformador apagassem todas as luzes da favela. A notícia então chegou rápido: Bem-Te-Vi estava morto, e ela escapara por pouco.

“Entrei em parafuso. Fui para casa dirigindo e chorando, pensando ‘meu Deus, as crianças”, diz. Naquele dia, Fabiana passou perto do destino de muitas mulheres envolvidas com o tráfico de drogas que, presas ou mortas, não podem mais criar os filhos.

A desestruturação das famílias é uma das mais duras consequências de um caminho que em geral começa na busca por dinheiro, poder e até amor. Outro resultado é a lotação das cadeias femininas, cuja população, majoritariamente negra, cresceu seis vezes nos últimos 20 anos, impulsionada pela Lei de Drogas (2006).

Mais da metade delas está detida por tráfico ou crimes relacionados, enquanto entre homens essa parcela é de um terço. O marido de Fabiana Escobar já foi um deles. Quando foi detido, em 2008, ela assumiu seu lugar na organização criminosa.

Aos 20 e poucos anos, tornou-se Bibi Perigosa e passou a ocupar uma posição de destaque no comando da maior favela do Brasil. Hoje, aos 39, é autora de três livros, diretora de um grupo de cinema e já teve sua história interpretada pela atriz Juliana Paes em novela global.

Assim como aconteceu com Bibi há uma década, outras traficantes ganharam as páginas policiais recentemente. Foi o caso de Sandra Helena Ferreira Gabriel, Sandra Sapatão, 56, acusada de chefiar o crime na favela do Jacarezinho, na zona norte carioca, e presa em maio enquanto tomava sol na praia.

Outra foi Rayane Nazareth da Silveira, a Hello Kitty, 21, apontada como gerente do tráfico de uma favela em São Gonçalo (região metropolitana do Rio) e morta em junho numa operação da Polícia Militar. Em julho, a Polícia Civil de SP prendeu ainda Lorraine Cutier Bauer Romeiro, 19, conhecida como Gatinha da Cracolândia.

As quatro tinham cargos de liderança, mas essa não é a realidade da maior parte das mulheres que entram no crime.

“Durante todo o tempo em que acompanhei de perto o sistema carcerário, só conheci uma mulher traficante em posição de liderança. A enorme maioria ocupa uma posição subalterna e absolutamente descartável”, diz a advogada criminalista Maíra Fernandes, primeira mulher a presidir o Conselho Penitenciário do RJ (2011-2015).

Muitas escolhem o tráfico pelo retorno financeiro rápido sem precisar usar a violência, afirma. Vender drogas no varejo é uma opção de menos risco do que roubar, por exemplo, até para quem está grávida ou tem filhos pequenos.

Sustentar o vício é mais um motivo. Foi o caso da filha da diarista Mônica Teixeira, 50. “Era uma menina que fazia escoteiros, estudava, mas se envolveu com pessoas de má índole e começou a ir ladeira abaixo”, conta ela, que visita Clara (nome fictício) há seis anos na prisão.

Outras, como Bibi Perigosa, se envolvem por causa do companheiro. Quando seu marido foi preso, passou a fazer de tudo por ele: “Eu ficava com pena, achava que ele estava se destruindo, e não me destruindo. Ele não queria a meia baratinha do mercado, queria tudo de marca. Aquilo foi me pressionando a mexer a máquina, tinha que ter dinheiro”.

Ela só conseguiu sair do crime quando rompeu o relacionamento. “Quem vê pensa que eu fui forte porque brigava com polícia, com bandido, defendia ele na mídia. Mas eu fui forte a partir do dia em que me separei, porque ele tomou carro, cortou pensão”, narra ela, que vive até hoje na Rocinha.

Mas, para a psicóloga Flávia Carvalhaes, que atendeu adolescentes infratores durante nove anos em Londrina (PR), é ingênuo supor que todas as mulheres que entram no tráfico o fazem apenas por dificuldades financeiras ou por serem “vítimas de um grande amor”, e não por escolha.

“Existiam, sim, jovens que chegavam até nós com relatos de opressão que resultaram no envolvimento no crime, mas muitas relatavam prazer, adrenalina, desejo de compor esses espaços e o que essa vida proporcionava”, afirma.

Carvalhaes, que é autora de uma tese de doutorado sobre como essas mulheres são retratadas na mídia, categorizou três principais “perfis”: a vítima, a louca e a mulher fatal, hipersexualizada. O apelido Gatinha da Cracolândia seria um exemplo da última categoria.

“A mulher fatal geralmente é branca, loira, de classe média alta. Os discursos sobre mulheres negras ganham outros contornos”, diz. “O debate [sobre mulheres criminosas] muitas vezes traz um enfoque em frivolidades. Fica se discutindo a cor do cabelo, por exemplo, coisas que não são o foco em crimes cometidos por homens.”

Essa narrativa, portanto, reproduz noções de gênero que já existem na sociedade, reforçando um modelo de mulher dócil e passiva e diminuindo a potência dos seus atos criminosos, argumenta ela.

O delegado Marcus Amim, titular da Delegacia de Combate às Drogas do RJ, vê o mesmo padrão nas polícias. “A polícia às vezes negligencia a atuação de mulheres que têm tanto destaque quanto certos homens. Na morte da Hello Kitty e do Vinte Anos [seu cúmplice], foi dado destaque a ela por ser mulher, e não por ser narcotraficante no mesmo patamar que ele.”

Amim não vê diferença nas motivações para a entrada de mulheres e homens no crime, que normalmente se dá num contexto de poucas oportunidades, mas cita distinções nas formas de atuar.

“Em qualquer lugar de trabalho, a mulher é mais minuciosa, atenta, calma. Tem um tato melhor para gerenciar pessoas. O homem é mais impetuoso, violento. Não que não haja mulheres assim, como a Sandra Sapatão e a Hello Kitty, que participava inclusive de disputas de território”, disse.

O contraste entre elas e eles também fica mais explícito no momento da queda. Enquanto as organizações criminosas pagam até pensão e advogado para famílias de homens presos, mulheres na mesma situação costumam ficar desamparadas.

“Quando o homem é detido, todas as mulheres da vida dele o visitam. A fila começa na madrugada do dia anterior. A mulher, não. A gente chama [as cadeias] de verdadeiros cemitérios de mulheres vivas”, diz a advogada Maíra Fernandes.

Para ela, a consequência mais preocupante do encarceramento feminino é a separação das mães de seus filhos e a dissolução das famílias, alimentando um ciclo de violência. Fernandes conta que toda vez que visitava um presídio masculino, os homens perguntavam sobre seus processos. Já as mulheres questionavam sobre os filhos.

Além disso, a prisão geralmente sobrecarrega outras mulheres, como a diarista Mônica. Com uma remuneração de R$ 1.200, ela tem que sustentar a filha no presídio e mais cinco pessoas. O preconceito da antiga patroa também a levou a se demitir.

“Se você quer saber, não tenho tempo nem de pensar como eu estou, não me dou esse privilégio. Se eu for parar para pensar, acho que eu desmorono. É doloroso e triste demais”, lamenta.

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