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Autores da Bíblia imaginaram Deus com corpo semelhante ao humano, diz livro

Obra de britânica recoloca figura de Deus bíblico em amplo contexto de divindades

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São Carlos (SP)

O Antigo Testamento está repleto de passagens que parecem se referir aos aspectos corpóreos do Deus bíblico. Ele liberta os israelitas escravizados "com mão forte e braço estendido"; Adão e Eva ouvem os passos divinos no jardim do Éden; Moisés conversa com o Senhor "face a face, como um homem fala com seu amigo". Para a especialista britânica Francesca Stavrakopoulou, nada disso era metáfora: os autores da Bíblia de fato acreditavam que Deus tinha um corpo similar ao dos seres humanos.

É por isso que Stavrakopoulou, professora de Bíblia hebraica e religiões antigas na Universidade de Exeter, no Reino Unido, deu ao seu novo livro o título "God: An Anatomy" (Deus: Uma Anatomia).

A pesquisadora faz questão de interpretar a ideia da maneira mais literal possível, escolhendo, para os capítulos da obra, denominações como "Pés e pernas", "Genitais", "Torso" e "Cabeça".

Novo livro de professora britânica analisa figura de Iahweh, o Deus da Bíblia - Divulgação

O objetivo da autora, tal como o de outros especialistas ao longo das últimas décadas, é recolocar a figura de Iahweh, o Deus da Bíblia, dentro do contexto mais amplo das divindades do Oriente Próximo Antigo.

Algo que tem ficado cada vez mais claro é que a figura divina adorada por judeus, cristãos e muçulmanos de hoje originalmente era membro de um panteão mais amplo de divindades daquela parte do mundo.

A gênese do monoteísmo (a crença num único deus), ao que tudo indica, foi um processo gradativo, no qual a fé em Iahweh ia absorvendo aspectos de outros seres sobrenaturais e, ao mesmo tempo, passou a se diferenciar cada vez mais deles.

Um bom resumo de como isso teria acontecido está presente no livro. Mas a abordagem adotada por Stavrakopoulou é iluminadora principalmente por não dar tanto peso às transformações teológicas de larga escala, examinando, em vez disso, os detalhes das crenças e da vida religiosa dos antigos israelitas e de seus vizinhos.

O método comparativo é essencial porque os autores da Bíblia não escreveram seus textos num vácuo histórico e cultural. Na verdade, os reinos de Israel e Judá, que deram origem à literatura bíblica, apareceram tardiamente numa região que já contava com milênios de influências das civilizações da Mesopotâmia (atual Iraque), do Egito e da Síria, em especial por parte dos povos que falavam línguas da família semita, da qual faz parte o hebraico.

A comparação literária e linguística mostra que os aspectos corpóreos do Deus bíblico ecoam a maneira como outros povos da região imaginavam suas próprias divindades, enquanto estátuas, gravuras e até objetos do cotidiano, como moedas, tornam as descrições textuais palpáveis e mais fáceis de compreender.

Fica claro, por exemplo, que os povos semíticos da Antiguidade, entre eles os israelitas, pensavam em seus deuses como entes de estatura gigantesca, como mostram as enormes pegadas (com um metro de comprimento) marcadas no assoalho do templo de Ain Dara, na atual Síria. O complexo religioso, aliás, foi construído mais ou menos na mesma época que o famoso Templo de Salomão, em Jerusalém, e a estrutura de ambas as construções é muito parecida.

Tal como outros deuses supremos do Mediterrâneo antigo, Iahweh não tem nada de neutro em termos de gênero, mas é concebido como um ser agressivamente masculino, com a barba espessa e os músculos de um guerreiro veterano. Seu corpo é cercado por algo chamado "kabod", normalmente traduzido como "glória" em português, mas que originalmente era compreendido de forma mais concreta como uma espécie de luminosidade quase cegante, emanando da própria pele divina.

Essa masculinidade também se manifesta em termos sexuais, ainda que de forma figurada. Em livros como o do profeta Ezequiel, a relação de Iahweh com o povo de Israel é descrita, com bastante crueza, como a de um marido mais velho e poderoso que se uniu a uma adolescente ingrata. Ao traí-lo (ou seja, ao adorar outros deuses), a "jovem" Israel se torna alvo da justa vingança do marido, representada pela destruição dos reinos israelitas por impérios como a Assíria e a Babilônia.

A análise da pesquisadora não está isenta de alguns atalhos questionáveis. Um dos grandes exemplos disso é a simplificação excessiva do debate sobre a figura de Asherah (ou Asserá), antiga deusa-mãe semita cujo nome aparece associado ao de Iahweh em artefatos arqueológicos israelitas.

Sabe-se que Asherah era adorada como consorte do deus supremo El por diferentes povos do Levante. Não era preciso muito, portanto, para imaginar que, nos primórdios da religião de Israel, Iahweh teria sido visto também como esposo de Asherah, mais tarde se "divorciando" dela e renegando a deusa como simples ídolo pagão.

As evidências de que dispomos por enquanto, porém, não são suficientes para afirmar isso com todas as letras.

Acontece que as inscrições israelitas usam a expressão "Iahweh e sua asherah", uma construção que não é usual para nomes próprios no hebraico. Como "asherah" também é o termo usado para designar um antigo objeto de culto, uma espécie de poste de madeira colocado em templos da região, outra interpretação possível é que a frase designasse o objeto cerimonial, e não a deusa.

No livro, porém, Stavrakopoulou simplesmente assume que Asherah originalmente era a divina mulher de Iahweh.

Se é bom ficar de olho nesse tipo de detalhe, o conjunto do trabalho é uma contribuição valiosa para compreender a pré-história de algumas das mais importantes religiões da história.

God: An Anatomy

Avaliação: Ótimo
  • Preço: R$ 77,29 (ebook); 755 págs.
  • Autor: Francesca Stavrakopoulou
  • Editora: Picador

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