Descrição de chapéu Quilombos do Brasil

Moradores tomam posse definitiva do Quilombo da Fazenda, em Ubatuba, após 139 anos

Desde doação da proprietária da fazenda, em 1884, população enfrentou violência e fome, mas nunca desistiu

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Fernando Granato
Ubatuba (SP)

Os moradores do Quilombo da Fazenda, em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo, lembram com saudades do tempo em que plantavam mandioca e produziam farinha para ser trocada na cidade, após uma caminhada de dez horas, por outros produtos para sua subsistência. Apesar de viverem isolados até o início dos anos 1970, quando foi construída a rodovia Rio-Santos, eles tinham o sustento garantido.

O mesmo não aconteceu a partir dos anos 1980, quando a área em que viviam os quilombolas foi anexada ao Parque Estadual da Serra do Mar e a pesca e a agricultura foram proibidas por questões ambientais, levando os afrodescendentes à mais absoluta miséria. A situação só foi resolvida no final do ano passado, quando foi assinado um acordo histórico com a Procuradoria Geral do Estado, garantindo a eles a posse definitiva da terra e pondo fim a uma disputa que, ao todo, durou 139 anos.

A história do Quilombo da Fazenda começa em 1884, quando a proprietária da Fazenda Picinguaba, Maria Alves de Paiva —herdeira de uma sesmaria—, declarou em testamento o desejo de que seus 12 escravos fossem libertos e pudessem viver em parte da fazenda. A cultura do café estava em declínio no Vale do Paraíba, esvaziando a função de escoadouro do porto de Ubatuba e levando toda aquela região ao esgotamento financeiro.

A líder quilombola Laura de Jesus Braga, na Casa da Farinha, maquinário com mais de um século que garantia o sustento do Quilombo da Fazenda, em Ubatuba (SP)
A líder quilombola Laura de Jesus Braga com maquinário de mais de um século que garantia a produção de farinha e o sustento do Quilombo da Fazenda, em Ubatuba (SP) - Fernando Granato/Folhapress

Isso aconteceu depois de quase um século de prosperidade. A partir de 1810, começou um processo lento e gradual de enriquecimento de toda aquela região, a partir do plantio dos primeiros alqueires de café e, em seguida, da transformação do porto em embarcadouro de toda produção cafeeira do Vale do Paraíba.

A cidade de Ubatuba ganhou ares civilizados, atraindo famílias de estrangeiros, que chegavam com seus escravos. Foram construídos os primeiros sobrados coloniais, como o Casarão do Porto, que existe até hoje e se constitui no principal patrimônio histórico da cidade. Com a exaustão da terra e a transferência da cultura cafeeira para o oeste paulista, tudo se esvaiu. "Ubatuba voltava à condição de vila de roceiros pobres e caiçaras rústicos", escreveu a historiadora Maria Luiza Marcílio.

Naquele momento, com a perda do valor da terra, os herdeiros de Maria Alves de Paiva não se opuseram à permanência dos ex-escravos na propriedade. O mesmo aconteceu nas décadas seguintes. Em 1943, seu novo proprietário, o francês Saint Claire, autorizou por escrito a permanência dos descendentes das 12 famílias para trabalharem no sistema de usufruto, sendo proibidos de vender e arrendar suas terras. Em 1951, a fazenda foi hipotecada pela Caixa Econômica de São Paulo e passou para o controle do estado. Mesmo assim os quilombolas por lá continuaram. A partir da construção da estrada, no início dos anos 1970, a situação mudou: a área passou a ser cobiçada pelos especuladores imobiliários, para o turismo. E o sossego dos quilombolas acabou.

"Até morte teve por aqui", lembra a atual líder dos quilombolas, Laura de Jesus Braga, 68. "Fizeram tudo que puderam para nos tirar daqui."

A rotina de violência se agravou até que, em 1979, para controlar as grilagens e invasões de terra, a fazenda foi anexada ao Parque Estadual da Serra do Mar. "Aí, o que era para melhorar, piorou em nossas vidas", afirma Laura.

Ela conta que, apesar de poderem permanecer na propriedade, encontraram todo tipo de restrição ao modo de vida quilombola que até então praticavam. "Até minha casa, que segundo o governo ficava em área de proteção ambiental, teve que ser demolida", lembra. "Eu tinha cinco filhos e estava grávida do sexto, mesmo assim fiquei sem minha casinha."

Bisneta dos primeiros escravos moradores da fazenda, Laura mostra a Casa da Farinha, dentro do território quilombola, que ficou sem uso a partir da proibição do plantio da mandioca dentro da área do parque. "Tínhamos a terra e o maquinário, mas não podíamos produzir", diz. "Das cerca de 80 famílias que moravam aqui naquela época, 30 foram embora por falta do que comer."

Outro integrante do quilombo, Roberto Braga, 78, morador de uma das últimas casas de pau a pique que sobraram no lugar, conta que as décadas de 1980 e 1990 foram de penúria e contraste com os anos de sua infância, quando havia fartura a partir daquilo que plantavam e pescavam. "Eu mesmo não sei como consegui me manter aqui e criar meus filhos", diz. "O jeito foi fazer uma pequena maquininha de moer farinha em pouca quantidade e viver só daquilo que conseguia plantar no fundo do meu quintal."

Tínhamos a terra e o maquinário, mas não podíamos produzir. Das cerca de 80 famílias que moravam aqui naquela época, 30 foram embora por falta do que comer

Laura de Jesus Braga

líder do Quilombo da Fazenda

Em 2005, os moradores da antiga Fazenda Picinguaba foram reconhecidos pela Fundação Palmares como remanescentes quilombolas. A partir de 2019, os meios de sobrevivência melhoraram um pouco, quando foram permitidos pelo governo a praticar o chamado Turismo de Base Comunitária. Turistas passaram a frequentar o lugar —sobretudo para conhecer a Casa da Farinha, maquinário com mais de um século de existência—, e um dinheirinho foi entrando.

Mas a tranquilidade só voltou mesmo a partir do ano passado, quando o estado de São Paulo garantiu à comunidade de remanescentes quilombolas a regularização e titulação do território, com a assinatura de um acordo histórico de reconhecimento coletivo da área a partir de uma ação movida pela Defensoria Pública do Estado.

"Foram 139 anos de luta, desde a assinatura do testamento por dona Maria Paiva, em 1884", diz Laura Braga. "Só mesmo um povo forte como o nosso para aguentar isso."

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