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Marcelo Rede

IA começa a decifrar textos antigos. É uma boa notícia?

Repetir o que fizemos no passado com o esforço físico poderá atrofiar nossas habilidades intelectuais

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Marcelo Rede

É doutor pela Universidade de Paris 1-Panthéon-Sorbonne e professor de história antiga da USP

Desde o lançamento do ChatGPT, em 2022, estamos fascinados e preocupados, imaginando como será o nosso futuro em termos de educação e trabalho. Aqueles que, como eu, estudam as sociedades antigas, oscilam entre o entusiasmo e a dúvida diante do uso da inteligência artificial para traduzir documentos escritos há milhares de anos.

Entre 1999 e 2002, eu passei dezenas de dias no Museu do Louvre trabalhando os documentos do meu doutorado. Eram tabletes de argila escritos em sumério e acadiano, registrados em escrita cuneiforme. Formavam os arquivos de uma família que viveu no sul da Babilônia há cerca de 3.800 anos: contratos de compra de imóveis, partilhas de herança, empréstimos etc.

Em pleno século 21, eu usava os mesmos recursos e técnicas dos primeiros estudiosos que trabalharam com esse tipo de documento no século 19. Copiava cuidadosamente os tabletes a lápis sobre folhas de papel. Às vezes, fazia fotografias analógicas para trabalhar na biblioteca (as câmeras digitais apenas começavam a ser utilizadas). Depois, vinha o deciframento e a tradução dos textos.

Quando um amigo engenheiro me disse que aquele tipo de trabalho estava com seus dias contados, eu escutei desconfiado e cético. De fato, algumas experiências de uso de computadores no tratamento de manuscritos antigos estavam começando. Em geral, eram programas de reconhecimento óptico dos sinais cuneiformes. Os resultados eram modestos.

Nos últimos vinte anos, porém, uma revolução ocorreu. Não apenas os sistemas de escaneamento e digitalização de manuscritos se sofisticaram, como, mais recentemente, a inteligência artificial propõe realizar as etapas seguintes do trabalho, decifrando os textos antigos e os traduzindo para as línguas modernas.

Um projeto da Universidade de Munique, na Alemanha, visa criar uma grande base de transcrição e tradução de milhares de fragmentos de textos cuneiformes espalhados pelo mundo e busca completar as partes faltantes de clássicos da literatura mesopotâmica, como a "Epopeia de Gilgamesh" ou o "Poema Babilônico da Criação".

Outra iniciativa, da Universidade Ben Gurion, em Israel, abasteceu um programa com milhares de expressões da Bíblia Hebraica para tentar dar sentido a inscrições hebraicas e aramaicas encontradas muito fragmentadas e, portanto, de difícil deciframento.

Diante de tantas promessas, muitos se perguntam se a IA será capaz de substituir o trabalho humano de deciframento e tradução dos textos antigos. Não resta dúvida de que a tecnologia já pode fazer muito e ainda avançará enormemente.

Mas o debate se concentrou no potencial técnico da IA. Estamos questionando até onde ela chegará e poderá substituir o humano. No entanto, talvez nós precisemos mudar o foco da pergunta. O caso do deciframento precisa ser considerado no quadro mais amplo do uso da IA nas nossas atividades intelectuais. Ver as coisas historicamente pode ajudar.

Há muito tempo, a humanidade usa as ferramentas e as máquinas para potencializar sua capacidade física. Foi assim com a lança para caçar os mamutes ou a talhadeira de bronze para cortar as pedras de templos e pirâmides. Com a Revolução Industrial, a multiplicação de máquinas e instrumentos mecânicos tornou o esforço físico humano mais poderoso e mais veloz.

Isso permitiu que uma parcela da humanidade se dedicasse ao trabalho intelectual. Mas também transformou uma grande parte dela em operadores de maquinário e ferramentas.

A IA parece ter potencial para realizar uma nova revolução, desta vez na atividade mental dos humanos. Num futuro próximo, é provável que os humanos possam terceirizar seu esforço intelectual e sua capacidade criativa artística para máquinas dotadas de IA.

A questão a que deveremos responder não é se a IA fará essas tarefas melhor e mais rápido do que nós, mas se estamos dispostos, como humanos, a abrir mão do prazer da criação e da descoberta, inclusive na penosa tarefa de ler os textos antigos. Repetir o que fizemos no passado com o esforço físico poderá atrofiar nossas habilidades intelectuais e criar uma multidão de meros gerenciadores de fluxo de informação.

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