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Na periferia, faltam internet, computador e até mesmo papel e lápis para aulas a distância

Atividades remotas podem ampliar desigualdades educacionais, dizem especialistas

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São Paulo

Quando as folhas em branco dos caderninhos acabaram, Raphaela dos Santos, 4, passou a desenhar nas paredes da casa da avó em Paraisópolis, na zona sul de São Paulo. As broncas logo pararam —não porque a menina aprendesse que aquele não era o lugar adequado, mas pela falta de canetinhas ou lápis.

Longe da escola há mais de 50 dias, Raphaela está há semanas sem desenhar, ter contato com livros ou escrever o próprio nome, o que estava começando a aprender na Emei (Escola Municipal de Educação Infantil) Perimetral, em Paraisópolis.

Apesar de a Prefeitura de São Paulo informar que está disponibilizando atividades a distância para os seus alunos, muitas famílias não têm condição de acessá-las; alguns nem ao menos sabem que elas estão acontecendo.

"Ela passa o dia aprontando e quer ir brincar com as crianças que moram aí em frente. Só fica quieta quando está com o celular na mão”, contou a mãe de Raphaela, Cindy Santana, 21. Como trabalha em um pet shop, que manteve o funcionamento durante a epidemia, ela deixa a filha durante o dia com a avó.

A família ainda não recebeu o material didático que a prefeitura disse que vai enviar às casas dos alunos. Santana não sabia da distribuição do kit, mas disse achar que os livros vão ter pouca utilidade para a menina. “Ela não tem um lápis, uma caneta e não temos como comprar. Moramos em uma casa de um cômodo, com cinco pessoas, não tem espaço para ela fazer lição”.

Poucas casas acima, José Leandro Melo, 8, também não recebeu o material didático.

No terceiro ano do ensino fundamental, o menino, em sala de aula e com acompanhamento da professora, já tinha dificuldade para aprender a ler e escrever. Por isso, a mãe se preocupa que ele possa esquecer o que tinha aprendido.

“Todo dia peço para que ele escreva o próprio nome, mas ele já está esquecendo. Então, comecei a escrever as letras no papel e peço para ele copiar embaixo. Ele não gosta e eu também não sei se estou fazendo certo”, conta a mãe Jéssica Laurindo, 29.

Por orientação da professora, ela tinha marcado consulta com um neurologista para investigar se a dificuldade do menino poderia ser por algum transtorno. Com a pandemia, ela não sabe quando conseguirá levá-lo ao médico.

“Meu medo é que, sem escola, sem passar no médico, ele piore e esqueça o pouco que aprendeu com tanto custo”.

José passa a maior parte do dia assistindo televisão ou brincando com vizinhos em frente de casa. Laurindo disse achar bom quando o menino sai para brincar, já que se distrai e não fica o tempo todo pedindo para comer.

“Quando fica em casa, ele só quer comer. E, agora, não tenho muito para oferecer. Ganhamos a cesta básica e eu uso o auxílio da merenda para comprar as coisinhas de que ele gosta, leite e bolacha”, disse. Ela recebeu os R$ 55 do auxílio da prefeitura destinado para beneficiários do Bolsa Família.

A dois quilômetros de onde moram José e Raphaela, os dias sem aulas presenciais têm sido bem diferentes para Maria Clara e Isabella Pedretti, de nove e sete anos. Alunas do colégio Porto Seguro, no Morumbi, a dificuldade para elas tem sido o excesso de atividades escolares.

Elas acordam cedo, tomam café da manhã com os pais e depois seguem para a sala de casa para acompanhar as aulas remotas. A escola organizou dois períodos de atividade por vídeo de 30 minutos para cada turma.

“Como elas são pequenas, eu tenho que acompanhar, e às vezes coincide de as duas terem aulas ao mesmo tempo. Também só temos um computador para as duas, então revezamos com o celular”, contou a mãe, Giovanna Pedretti.

Internet

Apesar de ter aulas a distância, Isac Souto, de 16 anos, acorda cedo todos os dias e caminha por cerca de dez minutos até a unidade de Paraisópolis da escola Alef Peretz, onde é bolsista. Para conseguir acompanhar as atividades de seu último ano escolar, ele ganhou um notebook do colégio, mas não tem internet em casa.

“Eles me deram um chip de celular com um plano grande de dados, mas não é sempre que funciona. No começo, eu perdi algumas aulas porque não conseguia conexão. Então eles decidiram abrir a escola para que eu pudesse usar a internet”, contou.

Ele disse até preferir ir para a escola, já que em casa não tem um espaço onde possa estudar com tranquilidade.

Souto mora com mais sete pessoas, a mãe, padrasto, a avó e três irmãos. “Estudava na mesa da cozinha, mas, quando todo mundo acordava ou iam almoçar, era difícil me concentrar”.

Além da tranquilidade do ambiente escolar, o adolescente disse sentir falta do almoço que era servido no colégio. Desde que as atividades presenciais foram suspensas, ele é quem prepara a própria refeição, no intervalo de uma hora entre as aulas.

“Sinto falta da comida de lá, que era muito saudável e sempre com muitas opções. Comia salada todos os dias. Em casa, é sempre alguma coisa mais gordurosa. Como não tenho muito tempo, acabo quase sempre comendo pão com manteiga no almoço”, disse.

Mesmo com todas as dificuldades da adaptação à nova rotina, Souto disse se considerar privilegiado por continuar estudando, já que vai prestar vestibular no fim do ano.

“Meus amigos e vizinhos que estudam em escola pública não têm aula nenhuma, nada de atividade. Fico triste por eles. Vejo que eles vão dormir tarde, só ficam no celular, porque não tem outra opção”.

Uma dessas vizinhas é Débora Cibele dos Santos, 13, que, por mais de uma semana, tentou acessar o aplicativo da Secretaria Estadual de Educação para fazer as atividades online. Ela teve dificuldade com a internet e também com o cadastro.

“Liguei na escola para pedir ajuda, mas não souberam me informar qual era o problema. Ninguém me ajudou. Eu queria muito assistir às aulas de português e educação física”, contou a menina, que está no sétimo ano do ensino fundamental.

Ninguém tampouco tinha lhe dito que poderia acompanhar as aulas pela televisão.

Na mesma região da cidade e distante apenas três quilômetros da escola de Débora, estuda Carolina Betoletti, 16 anos, que teve a rotina pouco alterada com a suspensão das aulas presenciais. Aluna do ensino médio do Porto Seguro, ela teve a grade horária mantida, com atividades online das 7h às 15h todos os dias.

Para estudar, a menina usa um computador, tablet e celular. No início, a dificuldade era a velocidade da internet, já que os pais e as duas irmãs também fazem atividades remotas em casa. O problema foi resolvido com a contratação de um pacote maior de dados para a família.

“Sei que sou privilegiada por ter todos esses equipamentos e recursos disponíveis. Tenho um quarto só para mim para poder estudar. Minhas irmãs, que são mais novas, dividem o quarto e, para estudar, precisam usar fone de ouvido para não se atrapalharem”, contou.

‘Pandemia escancara desigualdade’

Para Anna Maria Chiesa, especialista em desenvolvimento infantil, a pandemia “escancarou a desigualdade e as fragilidades sociais” do país. Ela disse que as políticas públicas na educação dos últimos anos, assim como as elaboradas emergencialmente durante a crise do coronavírus, miram na igualdade, mas deixam de lado a equidade.

“Elaboram políticas universais em que a questão da igualdade é muito bem pontuada, mas que esquecem a desigualdade absurda do Brasil. É o caso da entrega de material didático. É um ótimo apoio para as famílias, mas não considera o ambiente em que as crianças estão, quais materiais têm disponíveis em casa”, disse.

Para ela, haverá prejuízo para crianças que estão em casa sem acesso a atividades escolares e em ambientes sem estímulo para se desenvolverem. Por isso, a retomada das aulas presenciais vai exigir um olhar atento e sensível a fim de recuperar esse tempo.

“Devemos ter repercussão desse período de isolamento por muito tempo, mas nada que seja impossível de ser revertido. Para isso, no entanto, vamos precisar de políticas e acompanhamentos muito bem estruturados em todas as áreas, educação, saúde, assistência social”.

Beatriz Abuchaim, gerente da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, também disse que a avaliação dos efeitos desse período no desenvolvimento das crianças vai ser fundamental para evitar que a desigualdade de oportunidades perpetue para os próximos anos escolares.

“Precisamos nos comprometer com a recuperação dessas crianças. Entender que estamos vivendo um período atípico que terá repercussões graves”.

“Mesmo as crianças de classe média, com todos os recursos que têm, não estão aprendendo a mesma coisa que na escola. Precisamos reconhecer isso e ter um olhar ainda mais atento para essas famílias mais vulneráveis, que não tem um lápis em casa”, disse Abuchaim.

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